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terça-feira, 29 de outubro de 2024

‘Precisamos reinaugurar o diálogo e o que estamos fazendo é uma guerra. E guerra, ganha quem é mais idiota’

Ambientalista Francisco Milanez avalia os impactos sociais da crise ambiental pelas perspectivas da saúde e da educação

Por

Luciano Velleda

Milanez diz que as pessoas estão vivendo em nome das urgências e não estão pensando no que é importante, como o destino da vida. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Um dos mais conhecidos ambientalistas do Rio Grande do Sul, Francisco Milanez esteve durante anos à frente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) como presidente, entidade em que agora continua atuando como diretor científico e técnico. Às vésperas da eleição que elegerá prefeitos e vereadores, o biólogo e arquiteto tem se dedicado a refletir sobre os impactos sociais da crise ambiental por outra perspectiva: a da saúde e da educação.

Atualmente fazendo pós-doutorado em que pesquisa a Teoria da Complexidade é aplicada na saúde, Milanez tem feito a leitura da sociedade também pela ótica da educação, na qual tem formação com mestrado e doutorado. Ao avaliar o atual momento e a inserção da pauta ambiental na campanha eleitoral, diz que observa o cenário de duas formas. Inicialmente, argumenta que o mundo está vivendo um processo fascista e destaca o quanto os processos fascistas “surfam” na desgraça. “É interessante como eles destroem as condições de vida do povo e depois oferecem promessas óbvias”, pondera.

Para ele, as pessoas estão vivendo em nome das urgências e não estão pensando no que é importante. Nesse contexto, a melhor forma de “distrair” as pessoas é falar das urgências, como é o caso das consequências da enchente.

A urgência talvez seja reconstruir a economia, reconstruir a sociedade e as casas, e a gente vai reconstruir igualzinho como estava antes para derrubar de novo”, critica. “Todo mundo que vive de urgências, mesmo que sejam artificiais, mas com a sensação de urgência de insegurança ou de faltar trabalho, geralmente não se dedica a pensar as coisas importantes, e a coisa importante é o destino do planeta, o destino da nossa vida. Só que ele não tem espaço diante das coisas urgentes. Então, ocupar as pessoas com desgraça é a melhor coisa para manipulá-las”, explica.

Em outro sentido e num caminho complementar, Milanez destaca o papel da educação na transformação social e elogia o trabalho de inclusão de alunos nas série iniciais no passado recente de Porto Alegre e do País. No plano federal, elogia a inclusão de milhares de jovens no ensino superior por meio do financiamento estudantil, do programa de cotas e outras ações afirmativas. “É a maior obra prima do futuro do Brasil”, acredita.

Apesar de apontar esses avanços, Milanez lamenta que o País ainda não tenha realmente transformado sua educação. Ao menos não como ele defende. Com a experiência de quem há mais de 30 anos trabalha com capacitação de professores, avalia que o avanço do ensino pressupõe agir junto aos professores, pois, segundo ele, não adianta ter o “mais lindo” propósito de educação se os professores estão enfraquecidos e descapacitados. Além da educação das crianças, ele enfatiza a necessidade de educar também os adultos, pois não há mais tempo para esperar as crianças crescerem para transformar o mundo. “Ninguém ensina ninguém a pensar. O Paulo Freire deu a receita. A gente faz as perguntas e as pessoas aprendem a pensar, porque se aprende a pensar, não se pode é ensinar a pensar”, afirma.

O especialista em educação defende a criação de um ambiente favorável para que as pessoas pensem, algo que, ele avalia, a escola ainda não consegue fazer do modo idealizado por Paulo Freire. A mesma questão se coloca com os adultos, sendo que estes já não estão mais na escola. “Tínhamos que fazer uma educação popular de adultos em massa. Não para fazer pensar como nós. Não é fazer catequese, é fazer perguntas para levar a reflexões. Se quiser ser de direita, tudo bem, só que seja com alguma razão. Hoje as pessoas são de direita e, às vezes, de esquerda, e não sabem o porquê. Quando não se sabe o porquê, a pessoa é uma besta sempre manipulada”, define, sem medir as palavras.

Milanez ainda acrescenta o mundo das redes sociais e a superficialidade da informação à sua análise. Por acreditar que é esse caldo cultural que leva uma sociedade a eleger governos autoritários e ditatoriais, ele defende a necessidade de construir cidadãos com pensamentos críticos e diferentes, porque tal diversidade é “a riqueza do ser humano”.

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

O pobre de direita nos Estados Unidos, Brasil e no mundo

Se não há direção, se nunca se identifica os reais causadores da pobreza

Jamil Chade fez uma reportagem muito interessante há poucos dias sobre uma fila quilométrica de milhares de pessoas nos Estados Unidos. Davam voltas em vários quarteirões, querendo uma vaga dos poucos empregos oferecidos por uma empresa. Cada um tinha um formulário preenchido e ficaram horas em pé na espera. Para Jamil, são muito prováveis eleitores de Trump, no que eu acredito também. O trabalhador médio americano tem seu salário estagnado há 50 anos. Se reclamar, outros ocupam o seu lugar.

O Coringa do filme famoso, ou seja, na sua primeira versão, espelhava exatamente este desalento e a raiva sem direção que ela provoca. O sentimento originário da extrema direita é a desorientação de não se saber quem ou o que causa o sofrimento.  Se não há direção, se nunca se identifica os reais causadores da pobreza, então a extrema direita entra realizando o seu trabalho de canalizar a raiva sem explicação de modo a criar um estado de guerra entre os pobres.

A questão principal aqui é como compreender essa opção de pessoas e partidos de elite pelos pobres? O ponto principal aqui é a desinformação que acompanha a privatização da mídia e das redes sociais no mundo todo.

A mídia não explica como e por quem essas pessoas são oprimidas e humilhadas. Sem saber o que causa seu sofrimento, as pessoas podem ser abusadas na sua vulnerabilidade pelo apelo da extrema direita que é o de basicamente apontar como causa da pobreza grupos já estigmatizados e ainda mais vulneráveis por conta disso. Os bodes expiatórios são muitos e todos intercambiáveis, dependendo do contexto e momento. Podem ser mexicanos ou muçulmanos nos Estado Unidos, assim como o nordestino, tido como preguiçoso, e o negro, visto como bandido no Brasil.

Paralelamente, para fazer a tragédia grande, os sindicatos foram enfraquecidos e não podem mais manter o contraponto de uma visão específica para os de baixo da escala social. Sem isso, a mídia e redes sociais movidas pelo dinheiro fazem a festa. Também falta um mínimo de inteligência e imaginação política aos partidos do campo democrático. A reação ao discurso dominante é praticamente nula. E este é o quadro muito especialmente nos Estados Unidos e Brasil, países de empobrecimento visível dos grupos marginalizados como os negros e os marginalizados.

Na Europa, a tradição social-democrata é mais forte e você não tem partidos defendendo a demagogia de um Pablo Marçal e dizendo que tudo depende do empenho individual. O que distingue um partido como o linke na Alemanha, mais à esquerda, e o partido nazista, o AFD, é a questão da imigração, mas se protege do mesmo modo nos dois casos os ganhos do trabalhador médio. Também não tem a influência nefasta da religiosidade neopentecostal.

Este é ponto central aqui: a singularidade da extrema direita americana e brasileira é muito parecida e tem a ver com empobrecimento não compreendido nas suas causas. Aí entra o racismo, por meio de suas máscaras, para transformar o negro em criminoso e o nordestino em aproveitador, como explicação espontânea do mundo social para quem não tem outra explicação. O “mapa racial” vem ocupar este lugar vazio. Outra similaridade fundamental com a política americana. Por conta disso, as extremas direitas que mais se parecem são a americana e a brasileira. Não por acaso existe até similitude nos casos de tentativa de golpe de Estado.


Jessé Souza

Escritor, pesquisador e professor universitário. Autor de mais de 30 livros dentre eles os bestsellers “A elite do Atraso”, “A classe média no espelho”, “A ralé brasileira” e “Como o racismo criou o Brasil”. Doutor em sociologia pela universidade Heidelberg, Alemanha, e pós doutor em filosofia e psicanálise pela New School for Social Research, Nova Iorque, EUA.

terça-feira, 22 de outubro de 2024

Governo federal prepara reforma administrativa

Comissão formada por especialistas, entre juristas, servidores públicos, pesquisadores e acadêmicos vai elaborar proposta

Por Gilberto Costa — Agência Brasil

O governo federal pretende fazer uma ampla reforma administrativa, com a construção de uma nova legislação que venha substituir o Decreto-Lei nº 200/1967. O decreto foi instituído durante a ditadura cívico-militar (1964-1985) e que ainda hoje “dispõe sobre a organização da administração federal.”

O propósito, segundo o Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI), é tornar a legislação compatível com a Constituição Federal.

Para isso, o MGI e a Advocacia Geral da União (AGU) criaram uma comissão formada por mais de uma dezena de especialistas, entre juristas, servidores públicos, pesquisadores e acadêmicos.

O grupo tem até abril de 2025, doze meses após a instalação da comissão, para elaborar a proposta de revisão do decreto-lei.

Além da encomenda na alteração do decreto, já com 57 anos, o MGI editou em agosto uma portaria fixando diretrizes das carreiras do serviço público (Portaria MGI nº 5.127). A norma estabelece princípios e orientações gerais que os órgãos públicos deverão seguir para apresentar as suas propostas de reestruturação de cargos, carreiras e planos.

Ela é o primeiro instrumento normativo desde a Lei 8.112 de 1990”, enfatiza José Celso Cardoso Jr., secretário de Gestão de Pessoas do MGI, em referência ao Estatuto do Servidor.

Em entrevista à Agência Brasil, Cardoso Jr. confirma que “o governo federal já está fazendo uma reforma administrativa na prática.” Segundo ele, a reforma está “em ação” desde 2023 e ocorre “por meio de uma série de medidas de natureza infraconstitucional e incremental que já vem sendo adotadas, para melhorar a estrutura e as formas de funcionamento da administração pública.”

Para o secretário, iniciativas somadas como o Concurso Público Nacional Unificado e a realização do dimensionamento da força de trabalho, para quantificar e definir os perfis mais adequados de servidores, e as novas normas para aperfeiçoamento da política nacional de desenvolvimento de pessoas “configuram uma reforma administrativa já em andamento.”

PEC 32

A realização da reforma administrativa foi anunciada pela equipe de transição do atual governo em dezembro de 2022. Na avaliação de especialistas, a reforma em andamento é mais abrangente do que a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 32, apresentada em setembro de 2020 ao Congresso Nacional, e chegou a ser aprovada em comissão especial da Câmara dos Deputados, mas que não foi levada à votação no Plenário por falta de apoio.

Politicamente, era uma coisa que não fazia sentido ali”, opina o cientista político Leonardo Barreto que acompanha o dia a dia do Parlamento há mais de duas décadas.

A professora e pesquisadora no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), Michelle Fernandez, assinala que a PEC 32 “nasceu obsoleta” e “tem um objetivo estritamente fiscal, de diminuição de gastos. Portanto, não olha para a atuação do Estado. A existência do servidor público é para atender a sociedade e colocar de pé políticas públicas.”

A PEC 32 trata dos funcionários públicos. Olha para uma pequena fatia do funcionamento do Estado”, opina Sheila Tolentino, pós-doutora em Ciência Política, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e integrante da comissão de especialistas que discute a legislação para substituir o Decreto-Lei nº 200. Segundo ela, o país precisa fazer a reforma administrativa “olhando para o serviço que é entregue à população.”

Representantes dos servidores públicos ouvidos pela Comissão de Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados no final do ano passado alertaram aos parlamentares que a PEC 32 poderia afetar a impessoalidade das contratações na administração pública, terceirizar carreiras permanentes em áreas como saúde, educação e assistência social, e dificultar as investigações de casos de corrupção que hoje são apurados por servidores com estabilidade.

Governo e as contas públicas

Entidades empresarias, como a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), defendem que a PEC 32 poderia gerar economia e impactar na diminuição da dívida pública.

Para o sociólogo Félix Garcia Lopes Jr., pesquisador do Ipea, visões fiscalistas de setores empresariais partem de premissas erradas, como, por exemplo, a de que ocorre aumento de gasto público com servidores.

A trajetória ao longo do tempo mostra que nunca tivemos crescimento excessivo do número de servidores ou inchaço da máquina pública. Isso está documentado”, diz o pesquisador, citando dados do Atlas do Estado Brasileiro (Ipea), estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e análise recente da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Os dados nesses estudos mostram que há no Brasil cerca de 11 milhões de servidores públicos, menos de 13% do número de trabalhadores do país. Proporção menor do que dos países mais desenvolvidos que formam a OCDE (20,8%).

Seis de cada dez servidores brasileiros trabalham para as prefeituras (6,5 milhões de funcionários públicos). Três de cada dez servidores têm vínculo com os governos estaduais (3,4 milhões de funcionários).

O maior contingente de servidores municipais e estaduais é formado por professores, profissionais da saúde e o pessoal da segurança pública, três categorias que fazem atendimento direto à população.

O restante de servidores públicos, 1,2 milhão de pessoas, é ligado à União, desses 570 mil estão na ativa. No nível federal, o maior contingente é de professores universitários. Os maiores salários estão concentrados no Poder Judiciário e no Poder Legislativo. Nos últimos cinco anos, diminuiu o número de servidores federais civis.

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Direita radicalizada avança e não se restringe a bolsonarismo, dizem especialistas

Diferenças entre atores políticos do campo impactam disputas internas em coalizão heterogênea

Por Ana Gabriela Oliveira Lima

Jair Bolsonaro e Michele

(Folhapress) – Os setores mais radicais da direita e da extrema direita no país seguem em expansão, em conjuntura marcada pela disputa de diferentes atores políticos, avaliam especialistas ouvidos pela reportagem.

Para eles, o contexto é dinâmico e favorável à rápida subida ou queda de personagens que, embora contestem o mesmo campo, apresentam características diferentes.

O cenário se desenrola em quadro marcado pela inelegibilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e a ascensão de outros atores políticos, como Pablo Marçal (PRTB), que disputou o primeiro turno para a Prefeitura de São Paulo e ficou em terceiro lugar, com 28,1% dos votos. No contexto, termos como “bolsonarismo sem Bolsonaro” e “bolsonarismo 2.0” aparecem com frequência nas análises sobre os rumos da direita nacional.

A realidade, entretanto, tem mais nuances e fala sobre uma expansão da ultradireita que vai além do bolsonarismo, diz o professor de ciência política da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Jorge Chaloub.

Ele diz ver uma expansão, para além do bolsonarismo, do que ele chama de ultradireita, definida pela junção de uma direita tradicional radicalizada ao longo dos anos com a extrema direita, cuja principal característica é tentar atuar por fora das instituições, em sanha golpista.

Compreender as nuances, afirma, importa para entender as disputas internas nesse campo que podem impactar o futuro da política.

Outras figuras da direita

Enquanto Bolsonaro seria ainda hoje a figura mais popular da extrema direita, Pablo Marçal, por exemplo, atua sem ter trajetória tipicamente bolsonarista, aponta o especialista.

Chaloub identifica com o adjetivo atores políticos que reivindicam constantemente um alinhamento político e ideológico com o ex-presidente, a exemplo do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos).

Não é que Marçal recuse Bolsonaro, mas ele nutre uma relação de ambiguidade com o ex-presidente”, afirma. “Ao mesmo tempo em que não quer perder o voto bolsonarista, quer se vender como alternativa no campo da ultradireita

Paralelamente, políticos da direita tradicional começaram a abraçar de maneira crescente pautas da extrema direita, como distinção a grupos minorizados, defesa do armamento e permissão de extermínio por parte da polícia. Compreender esse movimento, afirma Chaloub, é igualmente importante para entender a conjuntura nacional.

Exemplos de políticos com a característica seriam o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e o governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo).

Para Chaloub, Bolsonaro é uma figura da extrema direita que “só conseguiu chegar ao poder e governar porque contou com o apoio de setores da direita tradicional que se radicalizaram”.

Na concepção de Thais Pavez, cientista política e pesquisadora da USP, a capacidade do bolsonarismo de multiplicar possíveis novas lideranças demonstra sua atual resiliência e força. Isso se dá, afirma, em razão de aspectos como o fato de este ser um movimento descentralizado que tem força nas plataformas digitais e capilaridade social.

Pesquisa feita em março pela especialista apontou o espaço para novos líderes. Embora Bolsonaro ainda tivesse destaque, entrevistados que apoiavam o político cogitaram outras possibilidades de liderança para além do ex-mandatário nas próximas eleições presidenciais. Foram citados Tarcísio, o deputado federal Nikolas Ferreira (PL) (que, pela idade, só poderá concorrer em 2034), e a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro (PL).

Para as eleições municipais de 2024, os entrevistados tinham em março pouca informação, mas sinalizaram que o apoio de Bolsonaro a uma candidatura era relevante, embora não o suficiente para orientar o voto. “É um movimento que se descentraliza, mas essa descentralização não é sinônimo de fraqueza ou perda de apoio eleitoral”, afirma Pavez.

Na prática, Bolsonaro por vezes acenou a Marçal durante a campanha e só defendeu de maneira mais veemente a reeleição de Ricardo Nunes (MDB) na sexta-feira anterior ao primeiro turno. Na ocasião, chamou Marçal de idiota e o criticou por achar “que vai rachar a direita”.

Para a antropóloga Isabela Kalil, que coordena o Observatório da Extrema Direita, Bolsonaro ainda é inegavelmente a figura mais expressiva do campo.

Ela identifica o surgimento do bolsonarismo a partir de 2011, quando houve a projeção nacional do militar em programas de televisão.

Desde então, o movimento foi se consolidando em uma trajetória de mais de dez anos. Por isso, novas lideranças precisariam de tempo para ter a mesma tração e capilaridade do ex-mandatário.

Além disso, Bolsonaro ainda seria o único que consegue reunir o amplo apoio de diferentes setores da sociedade. Outras lideranças, como a senadora Damares Alves (Republicanos -DF) ou Michelle Bolsonaro, saem-se bem em grupos mais restritos.

A pesquisadora também afirma ser importante considerar que muitas das lideranças do bolsonarismo “atuam no limite da Justiça”. Por isso, diz, podem enfrentar percalços judiciais passíveis de comprometer sua trajetória política.

Determinadas lideranças tensionam os limites do que é democraticamente aceitável, o que faz com que possamos ter um cenário dinâmico de substituição”, afirma.

terça-feira, 15 de outubro de 2024

‘Quem resiste ao neofascismo não pode ser visto como o autor do ódio’, diz Felipe Neto

"Tem muita gente poderosa calada, sentada em cima de seus tronos de dinheiro e seguidores", diz, sobre combater o fascismo

Felipe Neto

Por Chico Alves

Desde que, há seis anos, Jair Bolsonaro e seus seguidores introduziram no Brasil uma forma suja de fazer política, lançando mão de xingamentos, mentiras e ataques coordenados nas redes sociais contra adversários, os defensores da democracia buscam uma estratégia eficaz de resposta. Nessa especialidade, pouca gente no país acumulou mais conhecimento prático que o comunicador Felipe Neto. No auge do bolsonarismo, ele se tornou um dos alvos preferenciais da extrema direita, ao criticar seus métodos abertamente.

A experiência do combate cotidiano ao neofascismo é contada em detalhes por Felipe no livro recém-lançado — e já best-seller –, “Como enfrentar o ódio” (Companhia das Letras). Em entrevista ao ICL Notícias, ele fala sobre essa disputa por corações e mentes e responde se é possível lutar contra a extrema direita sem usar também um pouco de fúria — algo que os bolsonaristas classificam ironicamente de “ódio do bem”.

Nessa hora, precisamos invocar a velha frase (supostamente) de Malcolm X: ‘Não confunda a reação do oprimido com a violência do opressor'”, cita Felipe Neto.

Sobre a preocupação daqueles que combatem com firmeza o autoritarismo não se tornarem parecidos com os seus adversários, ele sugere uma regra básica: “O principal é ter a ética como norte”.

Na entrevista, o autor conta a dificuldade de mudar publicamente de posição, passando de crítico feroz da esquerda — que por muitos anos acreditou ser “o mal do mundo” — a seu aliado, o sentimento de ser um cidadão alvo do “ódio de Estado” e relata o que o manteve nesse front, apesar de todas as dificuldades.

Felipe Neto trata também do sucesso de seu Clube do Livro, que levou três obras à lista de mais vendidos. Dá dicas preciosas para levar jovens viciados nas telas do celular a apreciar literatura. “É necessário consolidar a leitura não como um hábito, mas como um prazer, um hobby”, sugere.

ICL Notícias — É possível enfrentar aqueles que criaram a onda de ódio e fascismo que tomou conta do Brasil nos últimos anos sem, em alguma medida, destilar também algum ódio contra eles? Mais que isso: um pouco do que chamam de “ódio do bem” é necessário para enfrentar o fascismo à altura?

Felipe Neto — Sem dúvida é possível enfrentar, tanto que vencemos em 2022. O ambiente digital, que antes era território quase 100% dominado pela extrema direita, virou uma luta mais justa em 2022, o que ficou provado pelo gráfico de engajamento.

A questão é que não se trata de “ódio do bem”, mas sim de enfrentamento e resistência. Nessa hora, precisamos invocar a velha frase (supostamente) de Malcolm X: “Não confunda a reação do oprimido com a violência do opressor”. Quem resiste ao neofascismo não pode ser visto como o autor do ódio e da violência.

Como enfrentar o ódio sem ser tragado por ele?

É impossível enfrentar os agentes desse neofascismo criminoso sem sujar as mãos na lama onde eles travam suas batalhas. Por isso, o principal é ter a ética como norte, estabelecendo limites de até onde você pode ir nessa luta.

Para mim, algumas práticas não podem ser aceitas, sob o risco de nos tornarmos aquilo que lutamos para derrotar. Exemplo: criar notícias falsas intencionalmente contra os representantes neofascistas, ou distorcer propositalmente o que foi dito para atender a uma narrativa falsa. É possível vencer a extrema direita com a verdade.

Como você relata no livro, foi influenciado por ideias conservadoras e até reacionárias de membros da família, e depois fez uma mudança radical. Pode relatar a dor de descobrir que estava enganado, a dor de admitir isso publicamente e assumir bandeiras do grupo que por um bom tempo viu como inimigo político?

Foi extremamente difícil admitir que a esquerda não era o mal do mundo, pois essa era uma certeza que eu tinha desde criança. Nosso cérebro pode interpretar esse tipo de mudança como algo humilhante. Por isso, muita gente sabe que está do lado errado, mas persiste mesmo assim, pois admitir estar errado seria mais doloroso do que apenas seguir em frente.

Eu levei anos para ter a coragem de admitir o quanto estava errado, justamente porque meu ego lutou com todas as forças para impedir essa mudança. Eu sabia que seria massacrado, chamado de hipócrita e ainda seria rejeitado pela própria esquerda, que não veria essa transformação com bons olhos.

Como é enfrentar o “ódio de Estado” praticamente sozinho? Em que momento se sentiu mais desamparado?

Eu nunca estive sozinho, porque felizmente carrego comigo uma legião de seguidores que conhece minha história. Eles me salvaram inúmeras vezes, mais do que consigo contar. Justamente por isso eu percebi que precisava ajudar aqueles que não tinham esse mesmo escudo.

Foi quando fundei o Instituto VERO e o movimento Cala Boca Já Morreu, que defendeu gratuitamente dezenas de pessoas que foram atacadas pelo governo Bolsonaro com processos criminais de Segurança Nacional.

Todas as pessoas foram inocentadas e puderam seguir suas vidas sem se sentirem desamparadas.

O que o manteve na resistência ao fascismo, apesar de tantos ataques?

O mesmo que me manterá a vida toda: o inconformismo com a injustiça e a intolerância. Quando você vê um ato de injustiça ou intolerância e se cala, você se torna um covarde. Eu posso ter muitos defeitos nessa vida, mas a covardia nunca será um deles.

Você reclama que a classe artística se calou naquele momento crucial. Após quatro anos de bolsonarismo, há sinais de que isso tenha mudado?

A situação de 2018 para 2022 melhorou exponencialmente, mas ainda está muito, mas muito distante do ideal. A resistência contra a extrema direita deve ser constante, diária e parte da vida de todos que defendem um pacto civilizatório de luta pela democracia e pelos direitos humanos. Ainda tem muita gente poderosa calada, sentada em cima de seus tronos de dinheiro e seguidores.

Você agora está à frente de uma campanha pela leitura. Quais sugestões pode dar para tornar o hábito da leitura atraente para uma geração que se habituou a frases curtas, pensamentos fragmentados e relata grande dificuldade de concentração?

Em primeiro lugar, o distanciamento do TikTok, dos Reels no Instagram e dos Shorts no YouTube. Um cérebro tomado pelo vício em dopamina, em função desses aplicativos, dificilmente conseguirá se concentrar em um filme, quiçá um livro. É preciso enfrentar esses apps com linhas do tempo infinitas de vídeos curtos, pois eles são comprovadamente nocivos para a saúde mental humana.

A partir daí, é necessário consolidar a leitura não como um hábito, mas como um prazer, um hobby.

Para isso, precisamos do apoio da escola e do ambiente familiar, evitando transformar a literatura em assunto chato, em obrigatoriedade cansativa e imprópria para a idade. É preciso de uma reforma profunda no entendimento da leitura como essencial para a formação humana e resistência da sociedade.

Quais resultados do Clube do Livro mostram que a experiência está no caminho certo?

Os três livros que trabalhamos até agora foram para o topo da lista de mais vendidos. Foram milhares e milhares de cópias adquiridas, gerando imenso debate sobre as obras nas redes sociais.

Já temos mais de 6 mil assinantes em nossa plataforma, recebendo aulas de Literatura, História e Filosofia, além de seguirem a Trilha do Leitor e concluírem um mini-curso em cima de cada livro do mês, com certificado.

Está sendo uma das experiências mais transformadoras da minha vida e o feedback que recebemos dos assinantes é simplesmente extraordinário.

Depois de enfrentar o ódio do bolsonarismo, você foi rejeitado por alguns personagens ditos progressistas, que criticaram sua ida à Flip. Como reagiu, o que tem a dizer a eles?

Nada além de pedir para que assistam ao debate entre mim, Patrícia Campos Melo e a mediadora, Fabiana Moraes, lá na Flip. Está na íntegra no YouTube.