Na época, 35 agentes penitenciários
foram denunciados e afastados das funções, mas processo nunca analisou provas
ou oportunizou defesa. Quantidade de réus, sobrecarga de processo e falta de
juízes estão entre as explicações para a extinção da punibilidade.
Em uma das operações mais abrangentes do sistema prisional
caxiense, 254 policiais militares de Porto Alegre subiram a Serra em 17 de
junho de 2010 e invadiram a, na época, Penitenciária Industrial de Caxias do
Sul (a antiga Pics). Liderada pelo Ministério Público (MP), a força-tarefa
buscava provas de crimes de corrupção que estariam acontecendo na Pics e também
na Penitenciária do Apanhador. Seis meses depois, 35 agentes penitenciários e
três apenados foram denunciados por tortura, narcotráfico e formação de
quadrilha. Pouco mais de dez anos após a denúncia, o
processo não teve nenhuma audiência e a 2ª Vara Criminal reconheceu que os
crimes prescreveram. O resultado: o Estado perdeu, em primeira instância, o
direito de responsabilizar os réus. O formato da denúncia que dificultou o
cumprimento de mandados, o volume excessivo de processos na vara responsável
pelo andamento do processo e a falta de juízes são as explicações para uma
megaoperação terminar sem culpados.
A decisão
pela extinção da punibilidade foi assinada pela juíza Gabriela Irigon Pereira em
19 de novembro de 2020. A magistrada argumenta que sequer foi iniciada a
instrução do processo (quando seriam citados os réus para apresentarem defesa),
que a maioria dos réus mora fora de Caxias do Sul (o que dificulta intimações e
audiências) e que a pauta de audiências da 2ª Vara Criminal já está preenchida
até junho de 2022. Ou seja, o processo ultrapassaria os 12 anos sem sequer
analisar as provas ou apresentação de defesa dos acusado. Gabriela explica que,
ao final do processo, as penas seriam abaixo de quatro anos, o que levaria a
prescrição conforme estabelecido no artigo 109 do Código Penal.
"Foi uma operação muito grande e a ação penal foi feita de uma
forma que, na prática, não funciona. Depois de alguns anos, se percebeu que
este formato não funciona e já não se trabalha mais assim. Não se denunciam 38
pessoas na mesma ação penal, porque isso inviabiliza o resultado. Não temos
estrutura para 38 mandados de citação, 38 advogados peticionando no mesmo
processo, 38 pedidos de carga, pedidos de vista, numa época que o processo era
físico. Torna lenta demais a tramitação" — explica a magistrada.
Outra dificuldade
foram os quase três anos em que a 2ª Vara Criminal ficou sem um juiz titular
entre 2014 e 2016. No período, a Vara foi atendida em substituição pelo juiz da
violência doméstica, que desta forma não tinha tempo suficiente para atender a
um processo tão volumoso e sem réus presos.
"Quando
cheguei em 2016, tentamos desmembrar em processos menores. Esses 38 réus
viraram grupos de réus para cada crime imputado. Se desmembrou em 11 novos
processos para tentar dar o andamento e buscar um resultado final exitoso, que
é uma sentença de mérito, seja condenatória ou absolutória. Só que, depois de
seis anos, nenhum dos réus estava mais em Caxias do Sul."
Quando um réu mora em outra cidade, o instrumento utilizado pela
Justiça são as cartas precatórias. Trata-se de um pedido feito pelo magistrado
ao juiz de outra cidade, para que aquele Fórum intime o acusado do processo. A
juíza Gabriela aponta que o vai e vem de documentos não funciona em um processo
com tantos réus.
"A nossa
estrutura em um processo físico é deficitária, numa vara grande mais ainda, que
ficou tanto tempo sem um juiz titular e num processo desse tamanho... O risco
de prescrição é muito grande. Depois de quatro anos remando nestas precatórias,
chegamos a conclusão que era tarde demais, se perdeu a chance de dar uma
resposta" — admite a magistrada.
Prevista em
lei, a prescrição é a perda do direito estatal de punição, que é calculada
conforme a pena prevista para o crime denunciado. Quando a Justiça perde o
prazo para o julgamento, o réu não é nem condenado, nem absolvido, a sentença é
extinção da punição. É uma sentença administrativa.
Provas não foram
analisadas e réus não foram oportunizados a se defender
Ao
contrário do que geralmente ocorre, neste caso a culpa da demora não foi da
defesa. Apesar de reconhecer que há muitos subterfúgios de advogados que são
legítimos, mas atrasam o trâmite de um processo, a juíza da 2ª Vara Criminal
aponta que o processo não chegou sequer nesta etapa.
"O que
aconteceu nesse caso, que nos engessa, é que são precatórias de citação, que é
o início, quando o réu formalmente é cientificado que está sendo acusado de um
crime. Essa peça é obrigatória, sob pena de nulidade, e se ele mora em outra
comarca precisa ser citado por carta precatória. Até isso acontecer, realmente
o processo não vai andar. Nesse caso, a maioria dos réus estava pendente de
precatória ou de intimação para apresentar resposta à acusação, pois é um
direito se defenderem nos autos.
Como não se iniciou a fase de instrução do processo, as provas apresentadas
pela investigação policial também não foram analisadas. Conforme a denúncia
assinada por 12 promotores de Justiça, existiam vídeos de detentos sendo
espancados por agentes penitenciários, documentos falsos, interceptações
telefônicas e depoimentos de presos."
"A prova
inicial foi feita na fase do inquérito e há indícios de um crime que pode ser
grave. Mas, a prova judicial nunca se chegou nesta fase. Não se pode falar em
falha da polícia ou do MP na investigação e confecção de provas. O problema foi
(a
denúncia) ser feita neste formato com tanto réus, em uma vara
esgotada, com volume excessivo de processos, e numa vara sem titular por muito
tempo."
O que diz o MP
Procurado
pela reportagem, o Ministério Público afirma que recorreu da decisão judicial
de prescrição e aguarda julgamento do recurso. A acusação está sob
responsabilidade de dois promotores de Porto Alegre que não quiseram se
manifestar sobre o processo e não foram identificados pelo órgão.
Réus devem
postular indenização
Uma decisão
de prescrição só agrada aqueles que são culpados dos crimes que foram acusados
e, assim, escapam da prisão. Para aqueles que são inocentes ou tiveram
participação menor nos fatos relatados, a decisão extingue a oportunidade de
provar sua inocência.
Com exceção
dos três denunciados que eram apenados na época e continuaram presos por outros
crimes, os outros 35 réus eram agentes penitenciários que não possuíam
antecedentes criminais. Alguns deles sofreram sanções administrativas da
Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), incluindo exonerações,
outros foram transferidos para outras cidades gaúchas e teve os que optaram por
antecipar suas aposentadorias para evitar constrangimentos. Três réus morreram
ao longo dos 10 anos de processo.
"Foi o que
sempre dissemos: 'a montanha pariu um rato'. Naqueles dias da
investigação parecia que tinham encontrado fatos gravíssimos. No decorrer do
processo, foi verificado que a gravidade era menor e várias alegações não
ficaram comprovadas. Resultou a ser um processo que não foi prioritário. Perdeu
a gravidade inicial pela prova inconsistente. Passou a ser secundário o que
ocasionou esta prescrição" — afirma o advogado Vitor Hugo Gomes, que representa
quatro réus.
O defensor
argumenta que a prescrição num caso deste equivale a uma absolvição e que os
acusados podem ter direito a serem ressarcidos dos prejuízos que tiveram.
"Até
eventuais indenizações (por parte do Estado). Claro, eles não querem aparecer
diante desta situação toda. Mas referem diversos problemas diante desta
situação (de acusação), tanto financeiros quantos psicológicos. Muitos ficaram
desempregados, sem dinheiro e moralmente abalados diante da sociedade. Um dos
colegas deles se suicidou neste período, fato que foi noticiado e a provável
causa é este processo" — relata Gomes.
Um dos réus
considera que a investigação "foi enganada por um grupo de
marginais". Após o afastamento das funções de agente penitenciário, o
homem de 36 anos virou advogado e trabalha em Porto Alegre. Assim como os demais
denunciados, ele pede para ter a identidade preservada para não ser ainda mais
exposto.
"Os
marginais que se diziam vítimas de tortura estavam, na verdade, tentando algum
tipo de benefício. Esses servidores afastados eram atuantes, combatiam o tráfico
de drogas naquela cadeia e, por esta razão, não eram bem vistos por aquela
massa carcerária. É a desculpa mais batida dentro do sistema prisional,
inventar uma situação de vítima de agressão ou maus-tratos para tentar ser
transferido ou conseguir algum benefício. É uma inversão de valores muito
grande" — defende-se.
O réu
lembra que as denúncias aconteceram após a inauguração da Penitenciária
Estadual do Apanhador, cadeia que prometia ser modelo de cumprimento de pena,
mas hoje é base para facções criminosas ordenarem seus crimes. Sobre a decisão
de prescrição, o advogado declara que "o próprio MP percebeu o erro e
deixou o tempo resolver".
"É um
misto de indignação com justiça. Indignação porque perdemos colegas ao longo
deste processo, vítima da depressão causada por este processo degradante que
deixou um rastro de destruição muito grande na vida destas pessoas. Ao mesmo
tempo é de alívio e justiça, porque ninguém foi punido por essas mentiras de
marginais. Por isso iremos atrás dos nossos direitos. Queremos reparar a
questão administrativa que muitos servidores sofreram" — afirma o réu, que
garante que a inocência dele e dos colegas teria sido provada caso o processo
tivesse tramitado de forma célere.
Prescrição é
comum em crimes com pena menor
A prescrição
de um crime pela demora no andamento de processos é a derrota da Justiça
criminal. Infelizmente, com varas criminais sobrecarregadas e poucos juízes,
essa é uma realidade enfrentada no judiciário gaúcho. A situação é mais comum
em crime de menor potencial ofensivo, justamente por suas penas baixas.
"Existe
mais do que deveria. A prescrição nos acompanha em varas criminais,
principalmente em processos de crimes de penas mais baixas. Em casos de roubos,
crimes sexuais e tráfico, é muito difícil prescrever. Mas em crimes de furto,
receptação e estelionato, e crimes de trânsito, as chances de prescrição são
bem maiores. A razão é esse excesso de processos em tramitação" — admite a juíza
Gabriela.
Para evitar
a extinção de punibilidade, principalmente em casos de grave violência, o Poder
Judiciário conta com três estratégias:
Plataforma virtual
A adoção da tecnologia pelo sistema judiciário gaúcho foi
acelerado pela pandemia de coronavírus. O Tribunal de Justiça planeja a
digitalização de todos os processos, inclusive os criminais que até então era
postergado. Desta forma, o acesso aos autos e o envio de documentos ficam mais
fáceis. Mais que isso, o distanciamento social levou a praticamente todos os
juízes a manusear uma plataforma para realização de audiências por
videoconferência:
"É algo
positivo diante desta pandemia. Ao permitir que se ouça uma testemunha que mora
em outra comarca no ato, que a audiência seja feita com réus em casas
prisionais diferentes, com uma vítima numa outra cidade, com o seu advogado em
outra comarca, todos lincados nesta plataforma virtual... Foi um ganho muito
grande. Com processos eletrônicos e audiências virtuais, se reduz bastante o
tempo de tramitação, é muito mais rápido a ciência dos atos e irá reduzir este
tempo das precatórias. Pois, agora, podemos fazer a intimação por telefone, por
um aplicativo de envio de imagem. O êxito é grande, estamos vendo um resultado
muito positivo" — exalta a juíza Gabriela.
Mudança nas denúncias
Essa é uma postura aperfeiçoada com o tempo. O Ministério Público
têm evitado fazer denúncias com dezenas de réus. Mesmo em casos de conluio ou
crime organizado, a denúncia é feita em grupos separados por cada crime
investigado e datas que ocorreram. Segundo a juíza Gabriela, o ideal são grupos
de quatro ou cinco réus.
Vara contra o crime organizado
Outra mudança estudada pelo Tribunal de Justiça é uma vara especializada
contra o crime organizado. Este colegiado com cinco juízes atenderia a esses
processos mais complexos e que demandam ter um número maior de réus. A escolha
é por transformar a 17ª Vara Criminal de Porto Alegre em uma vara de
competência estadual, para atender a todo o estado.
"Este tipo
de processo irá migrar para esta vara que conta com cinco juízes que atuarão em
colegiado para sua segurança. Irá dar um resultado muito positivo, pois são
processos grandes, com muitos réus. O nosso cartório, por vezes, atua um dia
inteiro em um único processo desses, pois toma muito tempo. Essa migração,
portanto, ajudará a dar vazão da nossa demanda" — aponta a juíza da 2ª Vara
Criminal de Caxias do Sul.
RELEMBRE O CASO
16 de abril de 2010 - Vídeos de agentes penitenciários
agredindo apenados da Penitenciária Estadual do Apanhador são
vazados para o público. O caso teve repercussão nacional. Dois dias depois, foi
realizada uma intervenção e a Brigada Militar assumiu o controle da maior
cadeia da Serra, que havia sido inaugurada em 2008 para ser um modelo para o
Estado.
18 de junho de 2010 - Uma megaoperação
acontece ao amanhecer, com a entrada de 254 policiais militares de Porto Alegre
na Penitenciária Industrial de Caxias do Sul. As buscas por documentos e prova
era resultado de uma investigação iniciada em 2009 sobre corrupção de agentes
penitenciários, regalias e espancamentos de presos. Três apenados de confiança
destes agentes penitenciários foram transferidos. Ninguém foi preso.
7 de dezembro de 2010 - A
investigação sobre a Pics e o Apanhador resulta na denúncia de 35 agentes
penitenciários e três detentos. O grupo é acusado de formar
uma quadrilha que torturava presos nas duas cadeias caxienses. Os supostos
crimes eram encobertos por registros manipulados. Os fatos foram descobertos a
partir de depoimentos de presos, por interceptações telefônicas e pela
apreensão de documentos durante a megaoperação. A denúncia foi assinada por 12
promotores. Entre os fatos relatados, estão surras de "boas-vindas" a
detentos transferidos, repasse de armas para "presos de confiança" e
registros de ocorrências policiais como autolesões de apenados.
11 de abril de 2011 - O afastamento dos 35 agentes
penitenciários envolvidos nas denúncias de tortura
contra apenados foi publicado no Diário Oficial do Estado.