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sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Exposição conta 20 anos de história do Presídio Central e do olhar de um juiz

Exposição de Sidinei Brzuska

Marco Weissheimer / Sul21
"O Tribunal de Justiça criou um projeto, que durou até 2012, para o qual eu fui designado. Eu tinha que ir ua vez por mês nas 27 casas, ou seja, ia a uma por dia, praticamente". Foto: Guilherme Santos/Sul21
Até 2008, o sistema prisional gaúcho era fechado para a imprensa. Em função disso, havia poucas imagens sobre o que acontecia dentro dos presídios. No final daquele ano, o juiz Sidinei Brzuska, recém-chegado a Porto Alegre, decidiu abrir o sistema prisional à imprensa para que a sociedade pudesse ter conhecimento do que acontecia lá dentro. Brzuska chegou a Porto Alegre já com uma relação especial com o registro de imagens em presídios, desenvolvida em trabalhos anteriores em Santa Rosa e em Santa Maria. Tudo começou com fotos de presos e seus familiares durante visitas no presídio de Santa Rosa. “Eu percebi que a maioria dos presos não tinha fotos suas com seus familiares, uma realidade que não mudou até hoje”. A máquina fotográfica passou a ser um instrumento de trabalho constante do juiz que hoje é responsável pelo Juizado do Presídio Central, na 2ª Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre.
Parte desse trabalho está disponível ao público agora na exposição fotográfica 20 anos de Presídio Central, que ficará aberta ao público, com entrada franca, até o dia 15 de setembro no átrio do Foro Central II de Porto Alegre (Rua Manoelito de Ornelas, 50 – Bairro Praia de Belas), com visitação de segunda a sexta-feira, das 9h às 18h. A exposição traz fotos feitas por Sidinei Brzuska e imagens do acervo do juiz Marco Antônio Bandeira Scapini, falecido em 2014, com fotos do fotógrafo Marco Aurélio Couto.
Em entrevista ao Sul21, Sidinei Brzuska conta como a fotografia entrou em sua vida e em seu trabalho como juiz e como suas fotos ajudaram a convencer autoridades em determinadas questões, como a construção de um novo presídio em Santa Maria, durante o governo Rigotto, e a ampliação da estrutura de execução penal em Porto Alegre. A mostra tem também a função de mostrar à sociedade uma realidade que muitas vezes ela não quer ver. “A ideia do quanto pior melhor é muito forte entre nós. As pessoas não se dão conta de quanto pior, melhor é para o crime”, assinala Brzuska.
Sul21: Como iniciou essa tua relação com a fotografia no trabalho como juiz?

Sidinei Brzuska: O momento exato disso nem eu sei, mas começou na cidade de Santa Rosa. Eu fui juiz lá de 1998 a 2002. Na época, nem existia a fotografia digital. Era o tempo do filme ainda. No interior, há uma relação bem estreita do juiz de execução penal com o presídio e com a comunidade. Possivelmente eu tenha ido num daqueles eventos de confraternização que ocorrem nos presídios no dia das mães, dia dos pais, uma data como estas. Provavelmente eu tenha levado uma máquina num dia destes. Eu percebi naquele momento que a maioria dos presos não tem fotos suas com seus familiares. Essa é uma realidade que não mudou até hoje. Como eu estava por ali, algumas pessoas pediram que eu fizesse algumas fotos delas com seus familiares. Lembro que conversei depois com o pessoal de uma loja que fazia a revelação dos filmes e pedi que não me cobrassem muito caro.

Bem, eu comecei a tirar essas fotos e dá-las como uma lembrança de família. Constatei naquele momento que os presos passaram a fixas essas fotos nas paredes das celas e que aquilo dava um ambiente bom. Eles passaram a cuidar mais da cela, com mais organização, mais limpeza, menos palavrão. Causaram uma transformação boa. Muitos deles não tinham fotos com seus familiares e a maioria, até hoje, não têm, sobretudo fotos com crianças, fotos de pai com filho pequeno. Foi assim que começou.

Depois eu fui juiz em Santa Maria. Em Santa Rosa eu trabalhava com cerca de 200, 250 presos. Em Santa Maria, esse número pulou para 700, 800 presos. Em Santa Rosa eu conhecia todos os presos pelo nome. Em Santa Maria eu já não conseguia mais ter essa memória. Eu continuei fazendo aquele trabalho que comecei em Santa Rosa e comecei também a tirar fotos dos presos, mais para uma lembrança minha. Quando eu pegava o processo de um determinado preso e não lembrava quem era, eu olhava a foto dele em meu computador e via quem era. Isso facilitava o meu trabalho. O presídio de Santa Maria era muito antigo, da década de 70, e havia a necessidade de se construir uma nova penitenciária. Então, eu comecei a fotografar o presídio de Santa Maria para mostrar que ele não tinha mais condições de funcionar. Na época, foi feito um abaixo assinado com 35 mil assinaturas. Foi o maior abaixo assinado para a construção de um presídio da história do Rio Grande do Sul. Aí o presídio saiu. Dentro desse processo pela construção de um novo presídio em Santa Maria, eu tirei muitas fotos.

Sul21: Que acabaram ajudando no processo de construção do novo presídio…

Sidinei: Brzuska: Sim. Na época, o governador era o Germano Rigotto e o secretário de Segurança era José Otávio Germano. Houve um momento em que percebi que essa campanha para a construção do novo presídio em Santa Maria não estava chegando de forma clara no Rigotto. Havia um certo filtro, e o tema não chegava nele como devia chegar. Então, dois empresários de Santa Maria marcaram uma reunião com o governador e eu fui para esta reunião com várias fotos do presídio, que eu já havia mostrado para os empresários locais. Aí eu apelei. Usei as fotos das crianças e mostrei para o governador o local onde as crianças estavam frequentando no presídio. Aí o Rigotto se impressionou, pois nunca tinha visto aquilo.


Em Santa Maria, eu comecei a registrar o presídio para este fim. Quando eu cheguei em Porto Alegre, foi criado um projeto para a fiscalização dos presídios. Um pouco antes disso, tinha ocorrido um problema no Pará, onde uma adolescente havia sido colocada junto com adultos numa cela. Em cima desse fato, o Conselho Nacional de Justiça determinou que, mensalmente, o juiz de execução remetesse um relatório dizendo o que ele viu no presídio. Aqui em Porto Alegre havia apenas dois juízes e 27 casas prisionais. Não havia como atender a demanda do Conselho. Os juízes ficariam só indo nas casas prisionais e não conseguiriam trabalhar. Aí o Tribunal de Justiça criou um projeto, que durou até 2012, para o qual eu fui designado. Eu tinha que ir uma vez por mês nas 27 casas, ou seja, ia a uma por dia, praticamente. Para cada uma dessas casas prisionais foi aberto um processo administrativo, onde descrevi a realidade de cada uma com muitas fotos. Eu fotografei todas essas casas. Uma delas, a maior de todas, é o Presídio Central. Eu comecei, então, a fazer um registro fotográfico do Presídio Central sem qualquer propósito de exposição ou divulgação. Eu tinha que fazer o relatório e aquilo que eu via eu fotografava.

Eu fui pegando gosto pela fotografia e melhorando os meus equipamentos. No final de 2008, logo que cheguei em Porto Alegre, dei uma decisão abrindo o sistema prisional para a imprensa. Os presídios estavam completamente fechados. A sociedade não sabia o que acontecia lá dentro. É um espaço público onde um serviço público está sendo prestado e é natural que a sociedade saiba o que ocorre nele. A Ordem dos Advogados fez um pedido para que a imprensa tivesse acesso aos presídios e eu dei uma decisão assegurando a presença da imprensa nos presídios.

Sul21: Até então não era permitida a entrada da imprensa nos presídios?

Sidinei Brzuska: Não. Ninguém entrava. A partir dessa decisão, o fotógrafo Daniel Marenco entrou no presídio e eu fui com ele. Nós tiramos fotos do mesmo lugar, com a mesma luz. Pedi para ver as fotos dele e elas eram muito melhores que as minhas. Ele fez fotos maravilhosas. Aí eu vi que, além do talento do fotógrafo, eu também estava mal de equipamento. Ele me indicou um equipamento e comprei uma máquina nova. Minhas fotos ganharam uma qualidade maior e segui fazendo os meus registros.
Sul21: Como nasceu a ideia de fazer a exposição?

Sidinei Brzuska: Em um domingo ensolarado eu estava andando pela avenida Beira Rio quando encontrei um colega que tem um olhar muito refinado e técnico. Ele comentou que eu estava entrando em lugares aos quais as pessoas não têm acesso normalmente e que talvez pudesse sair algo daí. Fiquei com aquilo na cabeça. Os anos foram se passando e a nossa situação aqui estava muito ruim e não me refiro apenas a nossa estrutura de presídios. A nossa estrutura judicial também estava muito ruim. O Judiciário estava devendo muito à sociedade. Continuava existindo apenas uma vara de execução aqui e as decisões dos juízes levavam até seis ou sete meses para serem cumpridas. Isso criava problemas de toda ordem. Eu fiz um pedido ao Tribunal de Justiça, observando que o Judiciário não teria nenhuma moral para cobrar algo do Executivo se não fizéssemos a nossa parte.

A partir daí, iniciou-se um trabalho de convencimento do Tribunal de Justiça sobre a necessidade de ampliar a estrutura judiciária da execução. E, de modo similar ao que aconteceu em Santa Maria, eu utilizei fotografias que tirei. As fotos tiveram esse poder transformador da realidade. Neste processo de convencimento do Tribunal, eu levei alguns desembargadores ao Presídio Central para conhecer in loco a situação. Nós entramos nas galerias sem nenhuma maquiagem, com o calor, o cheiro e tudo o que havia lá. Todo mundo saiu de lá com uma sensação de indignação. O desembargador Claudio Baldino Maciel, que sempre teve um olhar muito humano, ficou impressionado com o que viu e disse que eu precisava mostrar à sociedade as fotos que retratavam aquela realidade. Essa ideia foi amadurecendo na minha cabeça.

Muitas pessoas acabam me solicitando fotos, para trabalhos de conclusão de curso, de mestrado, teses de doutorado. Já há vários livros que estão ilustrados com fotografias minhas. A própria Assembleia Legislativa, quando faz alguma publicação envolvendo presídios, acaba me solicitando imagens. Mais recentemente, vários professores resolveram fazer um livro com vários artigos e esse livro acabou sendo escrito com base em imagens minhas. Os autores escreveram sobre essas fotos. Já que as coisas estavam neste nível, eu resolvi então fazer uma exposição.

Sul21: Quais foram os critérios de escolha para montar a exposição?

Sidinei Brzuska: Eu devo ter entre 10 e 15 mil fotos do Presídio Central. Acabei selecionando mil fotos, tiradas em muitos momentos diferentes. Deixei todas essas mil fotos num mesmo padrão de textura, luz e contraste, como se fossem todas tiradas no mesmo dia, na mesma hora. Dessas mil, foram selecionadas um pouco mais de 80 fotos que integram a exposição agora. Ela está dividida em cinco momentos onde é mostrada a inteireza do Presídio Central. Não é uma exposição sensacionalista. Há uma parte da exposição que trata do andar das visitas, retratando a sua passagem desde o momento em que está fora do presídio, como ela ingressa e as partes às quais ela tem acesso. Ela também mostra as partes administrativas do presídio, sala de aula, enfermaria, local de trabalho dos profissionais. Além disso, mostra o tipo de material que a Brigada Militar utiliza em seu trabalho e o dia-a-dia nos corredores do presídio.
O Presídio Central é administrado pela Brigada Militar e tem uma regra segundo a qual da boca da galeria para dentro o controle é dos presos. A exposição também traz fotos desses ambientes onde os presos vivem, mostrando como eles se arrumam nas galerias, como se arrumam nas celas e como se ajeitam nos pátios. É uma exposição bem ampla, portanto. Muitas das fotos estão legendadas, contando a história da foto e o conjunto dessas legendas conta toda a história do presídio, abordando questões como o tráfico de drogas e de armas, crimes cometidos do lado de dentro e do lado de fora. Tudo isso vai sendo contado pelas imagens e pelas legendas. A exposição conta, por exemplo, que em um período curto de tempo foram apreendidas 58 armas industriais dentro do presídio. Uma dessas armas, que está na exposição, é uma pistola 9 milímetros nova, fabricada pela Taurus. Indagada sobre o comprador daquela pistola, a empresa informou que ela foi comprada em Miami, nos Estados Unidos. Poucos meses depois, estava dentro do Central.

A exposição também traz uma crítica ao sistema de Justiça, em uma foto onde aparecem duas mãos estendidas. Um dia eu estava caminhando no Central e deparei-me com um preso que era, literalmente, um farrapo. Vestia roupas totalmente rasgadas, uma por cima da outra. Tinha dois ou três calções. Um calção por cima de um moletom. Meias furadas uma de cada cor. Além disso, estava com um olho vazado.
Perguntei para ele porque estava ali ele, instantaneamente, me mostrou as mãos totalmente calejadas. “Olha as minhas mãos, eu sou um traficante?” – me disse.
Esse sujeito era um carroceiro que andava pelas ruas e, num certo dia, deve ter exagerado na cachaça, talvez tenha atrapalhado o trânsito, foi detido pela polícia e deve ter mandado os policiais para aquele lugar. Acabou sendo preso por tráfico e ficou preso um ano e oito meses

Sul21: Como o acervo do magistrado Marco Antônio Bandeira Scapini, composto por imagens do fotógrafo Marco Aurélio Couto, entrou na exposição?

Sidinei Brzuska: Quando o Ministério Público pediu a interdição do Presídio Central, em 1995, Scapini contratou um fotógrafo para fotografar o presídio. Quando ele se aposentou, ele guardou essas fotos em casa. Ficou com medo que elas se perdessem aqui. Um belo dia, ele entrou na minha sala e disse que ia me entregar essas fotos, pois talvez eu pudesse fazer um uso delas. Eu até não o conhecia tanto assim. Nos conhecíamos mais lateralmente, pois temos uma briga em comum: ele era gremista doente e eu sou colorado doente. Infelizmente ele nos deixou muito cedo.

Sul21: Há uma tendência na sociedade de não querer ver realidades como esta do Presídio Central. Essa exposição também parece ter uma função de mostrar o que as pessoas não querem ver.

Sidinei Brzuska: Sim. Essa é uma questão cultural nossa. A ideia do quanto pior melhor é muito forte entre nós. As pessoas não se dão conta de quanto pior, melhor é para o crime. Na verdade, todo mundo colabora, de um jeito ou de outro, para que esse quadro esteja do jeito que está.


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