Um caos os serviços penitenciários no Brasil
Os governos estaduais não
suportam mais financeiramente cuidar de tantos presos, avalia o defensor
público Renato Campos Pinto De Vitto, diretor-geral do Departamento
Penitenciário Nacional (Depen), órgão do Ministério da Justiça que coordena a
política penitenciária brasileira.
Nas
contas dele, o gasto anual do sistema passa de R$ 12 bilhões, consequência de
um modelo punitivista ineficiente que superlota os presídios e reforça as
desigualdades. Além de não respeitar a dignidade e os direitos dos custodiados.
“O gasto seria bem maior se fossem observadas as garantias da Lei de Execução
Penal”, disse, em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico.
A
estimativa é de que existam no Brasil 607 mil presos, conforme o último
levantamento preparado pelo Depen sobre a população carcerária. O estudo é
referente a junho de 2014. Ele afirma, porém, que o dado é apenas uma
fotografia, porque não contabiliza a entrada e saída dos privados de liberdade.
“Passam pelo sistema prisional anualmente mais de um milhão de pessoas,
computando as que ficam lá e as que entram e saem”.
Na
opinião dele, o número representa uma parcela significativa da população que
tem a experiência direta ou indireta da "prisionalização": “Os
familiares também recebem a carga da violência institucional do cárcere quando
vão visitar os presos”.
Na
entrevista, De Vitto se mostrou preocupado com o aumento do encarceramento
feminino nos últimos anos. Em 2000, havia 5,6 mil mulheres presas. Em junho de
2014, elas eram 37,3 mil, uma alta de 567%. A maioria tem como causa de
aprisionamento o tráfico de drogas. Para ele, os presídios, na sua maioria com
instalações inadequadas, não estão preparados para recebê-las. “São
estabelecimentos masculinos adaptados precariamente para receber mulheres.”
Leia a
entrevista:
ConJur —
Qual é a sua avaliação a respeito do enfrentamento do crime no Brasil?
Renato de Vitto — O
criminalista argentino Raúl Zaffaroni diz que, no campo da compreensão sobre a
violência e a criminalidade, não conseguimos fazer com que o conhecimento
científico trabalhado ao longo dos séculos seja considerado. Ele usa uma
metáfora interessante: tratamos o assunto como se na medicina ainda estivesse
em vigor a lei dos quatro humores, uma teoria da Idade Média em que todas as
patologias e doenças se relacionavam aos quatro líquidos corporais. Essa teoria
teve um caráter científico na época, mas foi absolutamente superada. Na
criminologia, ainda temos arraigada uma sensação do modelo inquisitorial, das
raízes do direito penal na América Latina. Acredito que o desafio é conseguir,
de uma forma sofisticada, dialogar com a sociedade para impor um caráter mais
racional para essa discussão. A violência é um dado da sociedade, não vai ser
extirpada feito um câncer, como defende o discurso punitivista.
ConJur —
Como pode ser feito esse diálogo?
Renato de Vitto — Temos
que ocupar os espaços de comunicação, dialogar de forma intensa com a sociedade
e apontar alternativas mais sofisticadas. É equivocada a sensação cultural de
que se trata de impunidade qualquer solução que não seja a prisão. A prisão
deve ser destinada apenas para os crimes mais graves, para as situações
que demonstram a necessidade de um isolamento. Hoje há uma banalização do
emprego da prisão.
ConJur —
Qual é a parcela de responsabilidade dos legisladores para o aumento de presos?
Renato de Vitto — O Brasil
avançou no campo da responsabilidade fiscal a partir da premissa de que não se
pode gastar mais do que se arrecada. Ao mesmo tempo, quanto à política
penitenciária, somos absolutamente irresponsáveis. A discussão que se dá no
Poder Legislativo de recrudescimento de penas, de mudança, por exemplo, do
Código Penal, que aumenta o lapso da progressão prisional sem nenhum estudo de
impacto financeiro, é exemplo dessa irresponsabilidade dos legisladores. A
tendência do Legislativo para assumir o protagonismo no chamado populismo penal
é também um problema que retroalimenta as dificuldades do sistema profissional.
A escalada do encarceramento massivo, no Brasil, aprofunda-se com a edição da
Lei dos Crimes Hediondos, nos anos 1990. De lá para cá, passamos de 90 mil
presos para 607 mil. E não houve redução de homicídios ou melhora da sensação
de segurança.
ConJur —
Os governos suportam financeiramente cuidar de tantos presos?
Renato de Vitto — O Brasil
não aguenta manter esse padrão de aumento da taxa de encarceramento por mais 15
anos. Houve alta de 136% entre 1995 e 2010, a segunda maior variação da taxa de
encarceramento mundial, atrás apenas da Indonésia. As prisões custam dinheiro e
os estados, hoje, não estão conseguindo fechar as contas. O gasto anual no
sistema prisional brasileiro é de mais de R$ 12 bilhões. Só o estado de São
Paulo tem um orçamento de R$ 4,2 bilhões. E isso sem observar as garantias da
Lei de Execução Penal, porque se fossem aplicadas efetivamente o gasto seria
maior.
ConJur —
Quantas pessoas estão presas no Brasil hoje?
Renato de Vitto —
Estimamos em 607 mil como uma fotografia de junho de 2014, mas já começamos a
fazer um levantamento que computa o movimento de entrada e saída dos presídios,
algo que não fazíamos. O novo Infopen vai ser divulgado com esse dado. Estou
muito seguro em dizer que passam pelo sistema prisional anualmente mais de um
milhão de pessoas, computando as que ficam lá e as que entram e saem. É uma
parcela significativa da população que tem a experiência direta ou indireta da
prisionalização, porque os familiares, em alguma medida, também recebem a carga
da violência institucional do cárcere quando vão visitar os presos.
ConJur —
Há também um custo social?
Renato de Vitto — Existe
um custo em termos de coesão social por causa dessa ferida aberta que mantém a
exclusão, contrariando a Constituição, cujo princípio é o da inclusão. A
sociedade precisa entender que há outros caminhos possíveis e respostas mais
sofisticadas para a questão dos conflitos que são tipificados como crime.
Precisamos desmontar o discurso explosivo do “bandido bom é bandido morto”, que
é ruim do ponto de vista civilizatório.
ConJur —
É quase assumir que a civilização não deu certo.
Renato de Vitto —
Exatamente. É adotar o discurso da barbárie para justificar a
violação dos direitos alheios, do inimigo. O sistema punitivo brasileiro é também
um mecanismo de exclusão. Não é à toa que falamos em seletividade. O retrato do
perfil do preso é o jovem negro que não terminou nem o ensino fundamental. Esse
dado é muito representativo e aponta que no sistema penitenciário existe uma
engrenagem que funciona fortemente reforçando alguns sistemas sociais de
exclusão.
ConJur —
O aumento da população carcerária feminina preocupa?
Renato de Vitto — O
aumento do encarceramento feminino nos últimos anos tem ocorrido de forma
avassaladora. Existem por volta de 37 mil mulheres presas, segundo levantamento
específico que o Depen fez sobre o gênero. Representa só 6% da população
carcerária, mas preocupa. Os presídios, na sua maioria com instalações
inadequadas, também não estão preparados para recebê-las. São estabelecimentos
masculinos adaptados precariamente para receber mulheres. O impressionante é
que 67% das mulheres têm como causa de aprisionamento o tráfico de drogas. O
perfil da criminalidade feminina é diferente, menos violento. Normalmente, há
uma motivação de proteção da família quando a mulher comete um crime. Tem outro
ponto importante a ser destacado: as mulheres não recebem muitas visitas, são
abandonadas quando presas, ao contrário dos homens. O núcleo familiar é
atingido de forma brutal também, os filhos frequentemente vão para abrigos ou
há destituição do poder familiar.
ConJur —
O Supremo recentemente iniciou discussões importantes sobre o sistema
penitenciário. Qual a opinião do senhor a respeito do posicionamento do STF?
Renato de Vitto — São três
decisões importantes. A primeira se refere a uma repercussão geral sobre a
possibilidade de indenização por dano moral do preso numa situação de desvio ou
excesso de execução da sua pena. A segunda é a possibilidade de intervenção
judicial nas hipóteses de necessidade de obras emergenciais em presídios. E tem
também a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347, que teve no
seu pedido liminar uma medida cautelar acatada pelo tribunal para
descontingenciar o Fundo Penitenciário Nacional. O sistema penitenciário tem um
problema de invisibilidade. É fundamental o Poder Judiciário tomar parte e
aprofundar essa discussão. O presidente do Supremo e do CNJ, o ministro Ricardo
Lewandowski, sempre diz que é preciso melhorar o sistema. É importante o Judiciário
tentar movimentar uma política pública nesse sentido porque a demanda é
regulada pelo próprio Poder. O pedido por mais vagas decorre de muitas
sentenças judiciais de prisão.
ConJur —O
Judiciário prende demais?
Renato de Vitto — Ocorre o
uso excessivo da prisão na gestão de uma micro-criminalidade de rua com impacto
social baixo. O padrão da Justiça estadual é a prisão do pequeno varejista, o
distribuidor da ponta, não é nem um distribuidor intermediário. O que chega
diariamente na justiça criminal é a formiguinha, que é substituída de um dia
por outro. Não estamos com essas prisões conseguindo neutralizar as redes de
distribuição de drogas ou a prática de outros crimes. Estamos, sim, deixando as
cadeias superlotadas, o que dificulta qualquer trabalho de gestão adequada,
facilitando a atuação de facções criminosas no interior dos presídios. Seriam
necessários cerca de R$ 6 bilhões e oito anos para zerar o déficit atual, de
230 mil vagas.
ConJur —
Se não houvessem mais decretações de prisões durante o período, claro.
Renato de Vitto —
Exatamente. A projeção do déficit com as tendências de encarceramento indicaria
a falta de 300 mil vagas até o prazo de entregas das obras. E tem ainda o gasto
com custeio dessas instalações. Uma das iniciativas mais relevantes dos últimos
anos para tentar resolver esse problema foi a implementação das audiências de
custódia. O Depen está apoiando financeiramente os estados para a criação de
centrais de alternativas penais e de monitoração eletrônica por meio de
tornozeleira.
ConJur —
O que acha da privatização de presídios?
Renato de Vitto — Não
podemos descartar soluções que deem alento ao sistema prisional. A
terceirização de serviços como alimentação é uma realidade. A elaboração de um
edital de Parceria Pública Privada prisional é difícil. Se não for bem feito,
pode amarrar o estado por 30, 50 anos a um contrato leonino. Tanto a PPP quanto
a cogestão são mais caras. Há também o risco da criação e organização de um
segmento do mercado que ganha com o aumento de presos, ou seja, lucra com a
redução da coesão social. Essa é uma realidade nos Estados Unidos, existe o lobby
das empresas que fazem a administração prisional pelo aumento das penas. Esses
modelos podem também precarizar ainda mais o público.
ConJur —
De que maneira?
Renato de Vitto — Pode
gerar mais desigualdades entre os presos e aprofundar as condições de
superlotação nas unidades públicas. O presídio privado não permite, por
contrato, a superlotação. Quem não for custodiado no privado por falta de mais
vagas, terá de ir para o público. Em nenhum país do mundo as privatizações
foram adotadas como substituto do modelo público, são sempre complemento. Nos
Estados Unidos existem cerca de 100 estabelecimentos privados que representam
7% da população custodiada total do país. Trabalhar com a iniciativa privada é
um desafio e uma obrigação para o político penitenciário, mas, talvez, existam
soluções mais inteligentes, como a parceira para criação de unidades produtivas
e oficinas de trabalho na penitenciária.