"É uma proposta descolada da realidade que só tem o intuito de fazer um marola com o populismo penal", diz ex-diretor do Depen
ASSOCIATED PRESS |
Prestes a ser votado no Senado,
o projeto de lei que obriga o preso a pagar pelo custo da própria prisão é
inviável e descolado da realidade do sistema prisional,
na avaliação de especialistas. Além de ineficaz para custear os
estabelecimentos devido à situação financeira dos presos e à escassez de
trabalho, a medida pode sobrecarregar as varas de execução fiscal.
O substitutivo
da senadora Soraya
Thronicke (PSL-MS) à proposta do ex-senador Waldemir Moka
(MDB-MS) altera a Lei de Execução Penal (LEP) para estabelecer a obrigação
desse custeamento. Se o detento não possuir recurso próprios, poderá ser
descontado até ¼ da remuneração recebida com trabalho dentro da prisão, caso
exista.
Se ficar comprovada que a pessoa não tem condições financeiras, a
dívida é suspensa por 5 anos, na expectativa de mudança da situação econômica
do devedor. No caso de presos provisórios, os valores serão depositados
judicialmente e devolvidos, no caso de absolvição.
A proposta esbarra em uma série de barreiras da realidade do
cárcere. Dados
do Departamento
Penitenciário Nacional (Depen) de 2016 mostram que 75% dos
encarcerados têm até o Ensino Fundamental completo, um indicador de baixa
renda. ”Nosso
sistema penal é altamente seletivo. O perfil socioeconômico dos presos é de
classe baixa e sem patrimônio. A esmagadora maioria das pessoas privadas de
liberdade seria insolvente”, afirmou à reportagem Renato de Vitto, ex-diretor
do Depen.
Somada à insuficiência financeira, está a precariedade do trabalho
dentro do sistema prisional. Segundo dados do Depen de 2016, dos mais de 726
mil presos, apenas 95.919 pessoas trabalhavam, sendo 87% dentro dos presídios,
em atividades de limpeza ou gestão.
Levantamento de 2014 do Depen, por sua vez, mostra que apenas
22% das unidades prisionais brasileiras dispõem de oficinas para atividades
laborais.
Do grupo que trabalha, 75% não era remunerado ou recebia menos do
que o mínimo legal, de ¾ do salário mínimo. No Distrito Federal, todos os
presos trabalhavam sem receber por isso. Apesar de ser uma violação de
direitos, alguns detentos se submetem a essa condição porque a cada 3 dias de
trabalho é reduzido um dia da pena.
Por esses motivos, ainda que seja
aprovado, o projeto de lei não deve ser efetivo para custear o sistema no
terceiro país que mais encarcera. ”É uma proposta descolada da realidade que
têm só o intuito de fazer um marola com o populismo penal para [parlamentar]
dizer que estão sendo duros no tratamento das pessoas que cometem tudo. A
efetividade como ação de financiamento do sistema prisional é absolutamente
zero”, afirmou Renato de Vitto.
De acordo com o ex-diretor do
Depen, a medida resultará em um trabalho adicional às procuradorias para
inscrever os presos na dívida ativa e entrar com ações de execução fiscal
contra pessoas que não têm patrimônio.
Há ainda outras inconsistências
na proposta. Indiretamente, condenados já ajudam a custear o sistema
penitenciário. Isso porque uma das fontes de receita do Fundo Penitenciário
Nacional (Funpen) são recursos confiscados ou vindos da alienação de bens perdidos
em favor da União Federal e multas de sentenças penais condenatórias com
trânsito em julgado (quando não cabe mais recurso).
Além disso, a Lei de Execução
Penal já prevê que o preso pague “indenização ao Estado, quando possível, das
despesas realizadas com a sua manutenção, mediante desconto proporcional da
remuneração do trabalho”.
Presos provisórios
Sendo dado mais recentes do Depen, 40%
dos presos são provisórios, ou seja, não tiveram seu julgamento concluído.
Estudo em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de
2014 mostra que, nesse grupo, 37% não foram condenados a cumprir pena atrás das
grades. Apesar de terem ficado presos provisoriamente, a pena final foi
restritiva de direitos, medida alternativa ou casos de absolvição ou de
prescrição.
Presídios não sabem quanto custa um
preso
Outro entrave para o preso pagar o
custo da própria prisão é a má gestão do sistema prisional. Auditoria coordenada pelo
Tribunal de Contas da União (TCU) de 2017 constatou que 59% de 17
estados fiscalizados não calcularam o custo mensal do preso nos 3 anos
anteriores.
″É um grande nó. O cálculo do custo é
muito complexo. Você não pode pegar o número de presos e dividir pelo
orçamento. Tem que fazer o cálculo de quantos entram, quantos saem e por quanto
tempo ficam. É uma equação complicadíssimo. É um problema de gestão é crônico
no sistema prisional”, disse Renato de Vitto.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
usa como referência o artigo Questão federativa, sistema
penitenciário e intervenção federal, escrito pelo ex-diretor do
Depen, junto com o ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, o ex-secretário
nacional de Justiça da pasta Beto Ferreira Martins Vasconcelos e o
ex-secretário-executivo do ministério Marivaldo de Castro Pereira.
De acordo com o levantamento, em 2017,
o gasto médio por pessoa privada de liberdade foi de de R$ 1.849,61 por mês. O
número é uma relação da dotação orçamentária para a política penitenciária e o
número de presos em cada estado.
A pesquisa destaca que o custo do
encarceramento deveria considerar também o financiamento “do próprio aparato
das forças de segurança pública, do sistema de justiça, além do impacto
decorrente da renda não gerada pelos indivíduos economicamente ativos privados
de liberdade e alijados de possibilidade de exercerem atividade produtiva”.
Ainda que fosse possível calcular
o custo individual de cada preso, o caos nas prisões evidencia o
subfinanciamento do sistema. “O valor destinado à manutenção desse preso
evidentemente não entrega o que custou ou o que o Estado se propõe, dadas as
mazelas do sistema, a absoluta falta de higiene, alimentação, epidemia de
doenças primárias, doenças como sarna, tuberculose. É um caos. Isso já mostra o
quanto esse valor não chega na ponta para execução dos serviços”, afirma o
vice-presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Hugo
Leonardo.
Ex-conselheiro de política
criminal e penitenciária, o criminalista compara a medida à escravidão. “Uma
pessoa que faz isso não tem muita preocupação ou vergonha em relação ao período
da escravatura. Se você priva o sujeito de liberdade, não oferece sequer
condições de custear sua defesa, não tem o mínimo de um julgamento justo porque
o Estado massacra o indivíduo e agora quer cobrar do preso, que é um corpo
moído, o custo dessa prisão, o custo da sua própria tortura?”, questiona.
Diante do perfil da população
carcerária, majoritariamente negra, pobre e com baixa escolaridade, o
criminalista classificou o projeto de lei como “cereja do bolo da
criminalização da pobreza”. “Mercantilizar a estadia do preso no cárcere é uma
piada pronta”, criticou.
Hugo Leonardo destacou ainda que
há presos que enfrentam dificuldades na reabilitação porque não conseguem pagar
penas de multa. “Isso já um grande gargalo nas varas de execução criminal em
todo o País. O sujeito continua sendo reincidente mesmo tendo cumprido sua
pena”, disse.
Por que muitos presos não trabalham?
As falhas na gestão do sistema
prisional são apontadas pelo especialista do IDDD como principal entrave para
ampliar a oferta de trabalho no cárcere. “Há um problema nos estabelecimentos
na regulação desse trabalho, como essas empresas entram, que tipo de
remuneração elas dão aos presos, como esse dinheiro é disponibilizado. Isso
tudo é muito malfeito. A gente não tem regras claras, uniformes. Você
disponibiliza trabalho para determinado grupo de pessoas e não para outros. O
valor pago pelas empresas é absolutamente irrisório. Existe uma série de
problemas que antecedem essa discussão e não foram resolvidos”, afirmou.
Na avaliação de Renato de Vitto,
falta vontade política para ampliar as atividades laborais. “Se isso se
tornasse uma prioridade política, iria buscar, na linha da responsabilidade
social e do empresariado, parcerias e destinação de postos do serviço público e
dos contratos públicos”, afirmou.
Há linhas gerais sobre as regras
para essas parcerias, como as diretrizes da Política Nacional de Trabalho do
Preso, mas cabe às secretarias de administração penitenciária estaduais
colocá-las em prática. O ideal é que a atividade sirva como capacitação e possa
eventualmente ser uma oportunidade de um futuro emprego. “Quando isso acontece
a gente está evitando reincidência. A gente está recuperando uma pessoa que
sempre é maior do que o erro dela. Esse projeto [de lei] vai contra toda essa
ideia”, destaca o ex-diretor do Depen.
O que diz o Ministério da Justiça
Em resposta à reportagem, o Depen
afirmou que “tem trabalhado para incentivar os estados e o Distrito Federal a
ampliar a oferta de trabalho aos presos”. O departamento subordinado ao
ministro da Justiça, Sérgio Moro, cita como exemplo nota técnica publicada em 17 de
junho com objetivo de fomentar “o modelo de fundo rotativo para o sistema
penitenciário, como ferramenta estratégica para o incremento das possibilidades
de geração de vagas de trabalho nos sistemas prisionais estaduais”.
Apesar desse posicionamento, o projeto de lei anticrime enviado à
Câmara pelo ministro restringe o trabalho dos presos. No caso de crimes
hediondos, a proposta veda saídas da prisão para atividades laborais.
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