"A desigualdade deixa fora da proteção social 70% das pessoas. E, no futuro, não precisará delas sequer como força de trabalho", reflete
FOTO: NETO GONÇALVES/DIVULGAÇÃO
Antes da
pandemia, Ailton Krenak mantinha uma agenda intensa. Escritor finalista do
Prêmio Jabuti com seu livro Ideias
para Adiar o Fim do Mundo, também lançou A Vida Não É Útil e O Amanhã Não Está à Venda, todos pela Companhia das
Letras. Por conta da produção, viajava com frequência pelo Brasil. Desde a
chegada do vírus, Krenak cumpre, porém, a quarentena na terra indígena de sua
etnia, a 200 quilômetros de Belo Horizonte. “Mantemos as nossas famílias
próximas. Podem encontrar-se no quintal, podem comer juntos, não precisam usar
máscara. Temos um regime orientado por um protocolo comunitário”, conta. No
oásis à margem esquerda do Rio Doce, em meio ao caos sanitário, ele segue
alerta para os dramas do mundo, como demonstra na entrevista a seguir.
CartaCapital: Você e os Krenak passam juntos a
quarentena. Como tem sido a experiência?
Ailton Krenak: A
pandemia não é um evento local. Posso estar sem contágios na minha aldeia, mas
há vários casos no entorno. Nos grandes centros urbanos há alguma vigilância.
Mas nas bordas do Brasil, na periferia, nas beiradas, no Porto de Manaus, no
Porto de Belém, ninguém controla aquele fluxo. Lá na reserva, observamos
preocupados. Não adianta nos protegermos se o lado de fora está bagunçado. O
recrudescimento da Covid-19 é um risco grave para nossas vidas. Temos
consciência, mas tememos que os vizinhos não tenham. Somos uma sociedade do
contágio. Por mais que um de nós tome cuidado, sozinho não consegue evitá-lo.
Mantemos nossas famílias próximas, as irmãs, os cunhados, podem encontrar-se no
quintal, podem comer juntos, não precisam usar máscara. Temos um regime
orientado por um protocolo comunitário, tomamos decisões juntos. Lá não há
decisões individuais. Se alguém põe em risco o coletivo, pode sofrer algum tipo
de sanção, inclusive posto para fora.
CC: Quais são as consequências e as lições
desta pandemia?
AK: A
morte deixa um trauma tão mal resolvido que ninguém consegue sair ileso. Há
perda de identidade, de memória e acomodação em uma condição de sobrevivente.
Isso não é bom para uma comunidade que precisa administrar suas necessidades
materiais. Voltar a trabalhar, voltar a cuidar da rotina doméstica. Muitos não
conseguirão. E isso é muito ruim. Estamos vivendo um tempo no qual ser otimista
é falta de educação. É sinônimo de estar alheio ao sofrimento dos outros.
“ESTAMOS
NO BRASIL EM UMA SITUAÇÃO DESGRAÇADA, QUE MISTURA O CORONAVÍRUS E A MISÉRIA
POLÍTICA”
CC: Você protagonizou uma das cenas mais
memoráveis da Assembleia Constituinte. Dói, 33 anos depois, ver tantos ataques
à Constituição?
AK: O
trato dos poderes com a Constituição piorou. Mas não é algo que acontece só nos
últimos tempos. Havia PECs tramitando há anos para mudar o capítulo dos índios,
tirar o direito dos quilombolas, reduzir políticas públicas. Essa fúria contra
a Constituição piorou nos últimos dois anos. E deixou de ser tentativa para se
tornar fato. É o desaparelhamento interno do Estado brasileiro. Das condições
necessárias para fiscalizar e proteger os territórios indígenas. E um estímulo
crescente à violência contra nós, banalizando a ideia de proteger o meio
ambiente, como se fosse coisa de gente boba. Quem é sabido mesmo passa o trator,
passa a boiada. Esse ministro do Meio Ambiente é um playboy fazendo fantasias
tecnológicas do que ele acha que é administrar. É uma ofensa à história da luta
ambientalista no Brasil o que esse sujeito faz.
CC: Ainda é possível firmar consensos no Brasil?
AK: Estamos
no Brasil em uma situação desgraçada, que mistura pandemia e essa miséria
política. Fora do Brasil, ao menos, há esperança de abrir outros debates acerca
das desigualdades que a pandemia agravou, as mudanças climáticas, os
refugiados… Essa é uma questão muito importante até para entender a pandemia.
Essa movimentação de gente, atravessando fronteiras no mundo inteiro, pode ser
um vetor de novas pandemias que podem arrasar a gente.
CC: O mundo está mais tribal?
AK: O
mundo não é uma pessoa. O mundo, idealmente, seria a humanidade, constituída
por gente igual. Como não somos nada iguais… No livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo,
eu ponho em questão o tópico da humanidade. Pode ser um propósito, uma
intenção, mas não existe. Antes, havia uma divisão por classes. Os ricos e os
pobres, os brancos e os pretos, o rural e o urbano. Eram divisões bem
primárias. Agora temos coletivos, dentro de uma mesma cidade, hostilizando um
ao outro. Intolerância religiosa… Há uma guerra entre esses mundos que se
articula com as outras irritações de diferentes setores dessa coisa que somos
nós todos, mas que não constitui uma comunidade. Somos ajuntamento de povos sem
nenhuma afinidade. Se não quisermos desembocar em uma guerra civil, precisamos
construir consensos, mas os políticos estão todos perdidos, feito cegos em
tiroteio. Ninguém sabe o que está fazendo, nem o governo nem os que estão fora.
CC: Muitos estudiosos veem neste momento de
crise sinais de queda do capitalismo. Você concorda?
AK: Vivemos
uma fase grotesca do capitalismo, mas não acho que estamos em uma crise que vai
diminuir a potência dele. O capitalismo tem produzido uma mudança em si mesmo
porque não fomos capazes de produzir uma mudança fora. Ele vai destruir o mundo
do trabalho como conhecemos, e vai dispensar a ideia de população. Essa, para
mim, é a próxima missão do capitalismo: se livrar de ao menos metade da
população do planeta. O que a pandemia tem feito é um ensaio sobre a morte. É
um programa do necrocapitalismo. A desigualdade deixa fora da proteção social
70% da população do planeta. E, no futuro, não precisará dela sequer como força
de trabalho. Quem promete um mundo de pleno emprego é cínico ou doido. Não
existe nenhuma possibilidade material de as coisas voltarem a funcionar assim.
CC: Mas não há nada positivo nisso? Por
exemplo, a chegada de grupos marginalizados ao poder. Mais gente preocupada em
repensar a relação com o consumo…
AK: O
fato de ter parlamentares indígenas, LGBTs e etc. mostra um endurecimento desse
processo de transição. Isso não muda as coisas, apenas será integrado ao
processo de desestruturação programada em que estamos todos metidos. Quanto à
renúncia à vida de consumismo de quem, como um hamster, só se preocupa em comer
e consumir, sem saber de onde vem, só uma parcela notou que está errado. Não
representa mudança no sistema global, no aquecimento do planeta, na erosão da
vida. Os cientistas mais ilustres dos anos 1980 em matéria de mudança
climática, quando viram o tempo que nos resta, foram para suas fazendas no
Texas, no Maine, deram no pé. Hoje, vários acreditam em redução de danos, mas é
difícil encontrar algum que afirme ser possível contornar a degradação.
Publicado
na edição n.º1138 de CartaCapital,
de 30 de dezembro de 2020
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