A pesada porta de ferro no acesso ao Centro de Reabilitação Padre Pio Buck, na zona leste da Capital, pouco difere de um presídio tradicional. Já a cor azul vibrante, as paredes limpas e uma frase pintada na entrada indicam que algo ali funciona diferente. "Aqui entra o homem, o delito fica lá fora", avisa. Há três meses, o local sedia a primeira prisão no método da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac) no Estado. O modelo humanizado permite que os apenados trilhem juntos os passos para a ressocialização.
Para ingressar na unidade, o preso precisa manifestar vontade de ser transferido para o local. Ele tem de já ter sido condenado - não há restrição quanto ao crime ou a periculosidade. Das 30 vagas, 12 estão ocupadas no momento. O conceito humanitário é aliado à rotina e ao controle rígidos. Não há celulares, drogas, álcool ou cigarros. É necessário manter o ambiente limpo e organizado. As atividades se iniciam às 6h e se encerram às 22h, com horário para estudo e oficinas. As tarefas são desenvolvidas pelos apenados (inclusive a abertura e o fechamento de celas), por funcionários e voluntários, que formam a direção da Apac.
"Apesar de ter método diferente, é uma cadeia. O que muda é que eles (apenados) são tratados com dignidade. A única coisa que perdem, por lei, é a liberdade. Mas a sociedade entende como vingança" - explica a tesoureira da Apac, Elizana Prodorutti.
Os próprios apenados, quando entram, sentem o choque em relação à metodologia. "Mas eu sou preso", conformou-se um quando questionado pelos voluntários se havia tido algum direito cerceado, além da liberdade, no período vivido em presídios no modelo tradicional. Na chegada, deixam de ser chamados de presos e passam a ser tratados como recuperandos.
"Não se percebem como pessoas com direitos violados. Muitas vezes, nem sabem quais direitos têm. Nossa missão é prepará-los para que possam ter vida em comunidade" - esclarece a vice-presidente da Apac Porto Alegre, Ana Júlia Odorize.
Custo do recuperando é a metade do preso tradicional
Uma frase pintada no pátio da unidade resume o conceito trabalhado ali: "Do amor ninguém foge". A mesma mensagem aparece em outras sedes pelo país. Foi dita por um dos recuperandos em Itaúna, Minas Gerais, Estado que possui o maior número de Apacs no Brasil. São 39, com um total de 3,2 mil apenados. Realidade que a juíza da Vara de Execuções Criminais da Capital, Sonáli da Cruz Zluhan, espera ver o Rio Grande do Sul alcançar.
"Para mim, a salvação é esse método. Se a pena fosse pedagógica, no nosso sistema carcerário falido, o preso nunca mais voltava. São pessoas que já vêm com toda uma estrutura. Ao menos que se resgate coisas que nem eles sabem que têm, não vai educar cumprindo pena. As pessoas não são 100% ruins e nem 100% boas" - diz.
A magistrada reconhece que investir em iniciativas que priorizem direitos humanos colide com um entendimento social de que presos devem ser submetidos a condições desumanas. Por outro lado, o método se mostra mais econômico. O custo do recuperando é a metade do preso tradicional.
"O sistema atual não só não propicia melhora, como piora aqueles que não entram tão "bandidos". Construímos presídios, mais pessoas são presas e a violência não diminui. Acredito que a Apac seja uma esperança, de que realmente possa mudar. É a luz no fim do túnel" - projeta Sonáli.
O método foi criado há três décadas no interior de São Paulo, abrangendo apenados de todos os regimes prisionais dispostos à ressocialização. Cada unidade pode ter, no máximo, 200 recuperandos. O índice de reincidência dos egressos é de cerca de 15%, segundo o Tribunal de Justiça de Minas Gerais. No sistema comum , é de 70%.
Vice-governador e secretário da Segurança Pública, Ranolfo Vieira Júnior entende que a metodologia não vem para substituir o sistema prisional comum e, sim, qualificar o atendimento ao preso. Avalia que o modelo, reconhecido internacionalmente, está de acordo com as premissas do plano lançado pelo governo, o RS Seguro.
"A metodologia tem como objetivo promover a humanização das prisões, sem perder de vista a finalidade punitiva. Eu diria que é importante, embora não seja a solução para o sistema prisional" - afirma Ranolfo.
Além da Capital, estão sendo implantadas outras 10 Apacs no RS, que funcionarão em Guaporé, Santa Cruz do Sul, Canoas, Três Passos, Palmeira da Missões, Passo Fundo, Pelotas, Rio Grande, Cruz Alta e Novo Hamburgo.
"Está indo bem pelo esforço de todas as pessoas, das instituições e dos próprios presos. Eles (os recuperandos) estão entendendo o tamanho do projeto, conscientes de que são os percursores e que a sequência depende deles. Vão impulsionar a iniciativa em outros lugares" - avalia o procurador de Justiça Gilmar Bortolotto, integrante do Núcleo de Apoio à Fiscalização de Presídios do Ministério Público e designado a trabalhar na implantação das Apacs no Rio Grande do Sul.
Um dos primeiros recuperandos da Capital, condenado a 30 anos, tenta deixar para trás a realidade que viveu no Presídio Central por seis. Aos 51 anos, trabalha na cozinha e preside o conselho da unidade:
"O projeto está dando resultado. É um orgulho muito grande" - resume.
Quando chega, o apenado passa pelo acolhimento e por revista feita pelos recuperandos. Todos são responsáveis por manter o funcionamento e controle. A união é reforçada a todo momento. "Estamos juntos!", repetem, de mãos dadas, pouco antes do almoço.
Acostumados a cruzar os braços e baixar a cabeça - reproduzindo o comportamento da massa carcerária - os recuperandos são ensinados a mudar a postura. Dois deles chegaram com poucas roupas. Os demais se uniram e cada um doou uma peça. Outro vendeu uma caixinha, produzida nas oficinas, e entregou o dinheiro à direção. Pediu que fossem comprados materiais para todos. Indicativos de que transformações invisíveis aos olhos também cruzaram a porta de ferro. Prisão com método humanizado, chamada de Apac, na Capital foi inaugurada há três meses. Atualmente, 12 apenados buscam ressocialização.
Para quem não conhece, na prática, uma Apac, qualquer coisa que se diga a respeito pode parecer exagero. E assim era comigo. Isso, mudou quando, no ano passado, durante as filmagens da série documental Retratos do Cárcere, da produtora Panda Filmes, tive a oportunidade de entrar em presídios do método em Itaúna, a 76 quilômetros de Belo Horizonte.
Quem conhece o sistema prisional tradicional (e não precisa ser preso para isso, basta mostrar interesse em saber como funciona uma das mazelas da sociedade) sabe que a ociosidade é problema crônico que favorece a reincidência e o fortalecimento de facções.
Pois a falta do que fazer é nula na Apac Itaúna. Os recuperandos acordam às 6h, têm dois turnos de trabalho (um voluntário e outro remunerado) e um de ensino. Só voltam às celas às 22h, para dormir. Na atividade não paga, produzem pães, doces, refeições, brinquedos, entre outras coisas, que são doados para creches, escolas e entidades filantrópicas. E ninguém reclama ou pensa em trocar de presídio.
LETICIA MENDES e RENATO DORNELLES/ZH
Nenhum comentário:
Postar um comentário