Governo publicou decreto que institui
a estratégia federal de desenvolvimento para o Brasil no período de 2020 a 2031
CartaCapital
O governo Bolsonaro publicou um decreto na segunda-feira 26 que institui a estratégia federal
de desenvolvimento para o Brasil no período de 2020 a 2031. O documento orienta
ações em diversas áreas para o País e aposta no caminho das reformas fiscais
como forma de alcançar um cenário futuro de estabilidade macroeconômica, ainda
mais distante com os efeitos da pandemia do novo coronavírus.
O decreto apresenta projeções de
cenários econômicos para cada área do País, um chamado referência e outro
transformador e, na visão menos otimista, aposta em um crescimento anual médio
de 2,2% no Produto Interno Bruto (PIB) e um PIB per capita de 19,1% em 2031. As
projeções vão na contramão do observado até aqui. Cálculos feitos pela
Consultoria LCA apontam que, de 2013 – último ano de crescimento robusto da
economia – até 2020, o País encolheu 11,3% de seu PIB per capita.
Na educação,
o decreto aposta em melhorias de índices educacionais tais como Índice de
Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), Programa Internacional de
Avaliação de Alunos (Pisa), e aumento da porcentagem de estudantes que concluem
o Ensino Fundamental. Com o Ideb, por exemplo, que tem taxa de 5,8 nos anos
iniciais do Ensino Fundamental, o governo propõe alcançar 7,2 em 2031, e 7,9 em
um cenário mais amplo de reformas.
Para o professor José Marcelino de
Rezende Pinto, da USP, pesquisador em financiamento da educação, as projeções
são irreais em um contexto de falta de mais recursos na educação: “Falar em
melhorar nota do PISA e o IDEB sem melhorar a qualidade da educação, o que
implica em investimentos, é o mesmo que querer tirar o corpo do chão puxando os
próprios cabelos”.
“A previsão de recursos por aluno do Fundeb para
2020, que deve cair em função da pandemia, é de um valor mínimo (9 estados)
para os anos iniciais do Ensino Fundamental de 304 reais/mês. Só Roraima e Rio
Grande do Sul apresentam valores um pouco acima de 400. Quanto custa uma escola
privada considerada de qualidade? Pelo menos 1.500/mês. Na Coreia do Sul, em
valores padronizados pelo dólar internacional, o gasto aluno é o triplo do
Brasil. Na lista do OCDE, o Brasil é o que pior paga seus professores. E
qualidade da educação, isso é consenso, é qualidade dos professores. Como
melhorar IDEB e PISA sem valorizar os profissionais da educação?”, questiona.
A questão orçamentária, explica
Marcelino, também será determinante para conter o cenário de evasão que deve
piorar com a pandemia. “O Brasil tem apresentado um aumento incremental nos
concluintes do Ensino Fundamental há décadas, contudo, os efeitos da pandemia
abrem um cenário de incertezas. Qual será o seu impacto na evasão no Ensino
Fundamental e Médio? Tudo depende de política de investimento na educação
pós-pandemia, o que não tem acontecido”.
Mesmo no auxílio emergencial
destinado aos estados e municípios para compensar a perda das receitas, ou
seja, queda de impostos que destinam 25% para o ensino, não houve preocupação
de vincular parte de seus recursos, descontada a parte carimbada para a saúde,
para a educação (deveria ser no mínimo 25%), diz Marcelino: “A perda acumulada
no Fundeb está em 6%, mas deve ser maior com o fim da ajuda dos 600 reais, pois
esse fundo depende muito do ICMS, que depende do consumo. E o pior, a base é
2019, que teve a mesma receita de 2014 em valores atualizados!”.
O gráfico a seguir mostra a evolução das despesas federais:
O professor ainda explica que, para que o País consiga alcançar um cenário econômico mais promissor, precisa efetivar uma política de crescimento econômico inclusiva e distributiva. Isso envolveria investimentos fortes em políticas estruturantes, reforma agrária, crédito barato para micro e pequenos produtores, por exemplo, e em educação, dado o seu potencial de retorno social e individual e a capilaridade dos gastos.
“São mais de 4 milhões de trabalhadores da educação espalhados
em todo o País. A experiência de 29 mostrou que é na crise que o Estado deve
investir: esse foi o caminho da Europa e dos EUA que deu certo e mesmo o
Brasil, pós-crise 2009, revertida posteriormente com as políticas recessivas de
fins de 2014, com Levy, em diante. Vivemos o pior dos mundos: o governo corta
na carne, com exceção aos militares, mas o PIB cai mais que a queda nos gastos
e nossa dívida frente ao PIB aumenta. Quando se analisa a receita do Fundeb,
fica evidente o impacto positivo que os R$ 600 tiveram para minorar os efeitos
da pandemia, mas e agora?”, indaga.
A coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à
Educação, Andressa Pellanda, chama atenção para o fato das melhorias
educacionais serem projetadas pelo governo no contexto do regime fiscal do
Teto de Gastos, que limita o gasto máximo do orçamento ao ano anterior,
corrigido apenas pela inflação.
“Qualquer política de qualidade para a área da educação
necessita de recursos. Os que temos hoje está aquém do que é necessário, como
ficou demonstrado durante a tramitação do Fundeb. Temos desafios quanto às
políticas de formação e valorização dos profissionais da educação, na qualidade
da educação, bem como em termos de acessos na educação infantil, na educação de
jovens e adultos e em relação aos estudantes de zonas rurais, por exemplo. Isso
tudo custa, é impossível o governo fazer políticas públicas para a área, com
qualidade, se nos mantivermos nessa política que tem achatado o orçamento para
a educação”.
Outro ponto destacado por Olavo Nogueira Filho, diretor executivo
do Todos pela Educação, é o orçamento do Ministério da Educação previsto para
2021 que, além de não ter incrementos substanciais, deve ter 42% condicionados
à liberação de créditos extras. “Como o governo projeta melhorias na educação
diante esse cenário?”, questiona.
Análise
das metas
Para Andressa Pellanda, ainda que o decreto traga pontos
nevrálgicos e centrais para a política nacional, não dialoga com o arcabouço
legal do País sobre educação, e que inclusive projetam metas educacionais para
o País, caso do Plano Nacional de Educação, que sequer é citado: “O que vemos
são ideias bastante retrógradas acerca dos direitos que se relacionam ao
direito à educação”.
Olavo Nogueira afirma que o texto está mais para “palavras ao
vento”: “Muito do que está ali evidencia contradições com o que o governo tem
feito e não tem feito. O documento sinaliza, por exemplo, a redução de
desigualdades, tema com o qual tem sido completamente omisso durante a
pandemia, no sentido contrário ao que deveria ser o papel do ministério da
Educação”.
“Melhorar a educação básica e o ensino superior não parece ser o
objetivo do Ministério da Educação. Se a gente quer, de fato, ser um país mais
desenvolvido em diferentes esferas, fato é que perdemos dois anos aí de governo
Bolsonaro que vão nos custar muito caro nos próximos anos, em especial
considerando o novo contexto da pandemia pelo qual estamos passando”, completa.
CartaCapital selecionou algumas metas
previstas no documento e pediu para os especialistas tecerem comentários.
Confira:
Andressa Pellanda: “O decreto dialoga com a agenda da meritocracia o tempo
todo. Até fala em formação de professores, valorização de boas práticas que
impulsionem o debate sobre qualidade, mas confunde qualidade da educação com
desempenho. Em alguns momentos até substitui a tríade acesso, permanência, e
qualidade por acesso, permanência e desempenho, o que é coerente com a agenda
da meritocracia pretendida, mas que já vem sendo ultrapassada tanto pelas
políticas educacionais e legislação, como pelos debates e pesquisas, de acordo
com a realidade do país”.
Olavo
Nogueira: Essa
coisa dos gestores, para mim, fica meio dúbia, eles estão falando de quem, dos
gestores das secretarias dos estados e municípios ou dos gestores escolares? É
uma redação genérica que não diz muito. O ponto central é que o ministério da
educação tem pouca capacidade de incidir na estrutura de gestão das secretarias
municipais e estaduais por conta da autonomia. Mas pode e deve apoiar,
fundamentalmente as secretarias menores, em regiões mais pobres, do ponto de
vista técnico e financeiro. Se é esse o caminho, positivo. Agora, não está
clara a estratégia para fazer isso.
AP: A agenda das diversidades praticamente não é citada. O que se
fala é em respeito às diferenças que, no campo das pesquisas e políticas sobre
diversidades, é bastante ultrapassada. A gente fala em promoção das diferenças,
promoção das diversidades, uma política que vinha sendo realizada pela
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi),
também extinta pelo governo, então segue na mesma toada. Eles falam que vão
fazer uma política de combate às desigualdades sociais, e não a todas as
desigualdades, discriminações. Essas terminologias que são muito fortes para a
agenda da política de promoção das diversidades e inclusão na educação ficam
escondidas.
AP: Essa agenda de promoção das
famílias na educação é de grande preocupação. A gente sabe que o conceito de
família que esse governo tem é de família patriarcal, heteronormativa – mãe,
pai e filho – que também é um conceito ultrapassado em termos de garantia dos
direitos humanos e dos direitos LGBT. Há uma ênfase dessa família tradicional.
No final desse trecho, se fala em respeito aos direitos dos pais ou
responsáveis pelos alunos.
Claro que ele precisa existir, a própria Lei de Diretrizes e
Bases dá escolha aos pais dos alunos para matricularem seus filhos em escolas
privadas, religiosas, fora do sistema público, mas isso não significa que eles
tenham a única voz ou a voz predominante na política educacional, já que ela
precisa ser realizada pelo estado, em parceria com a sociedade e a família.
Isso sinaliza um possível avanço na agenda da educação familiar,
o homeschooling, que é uma agenda que a própria Damares tem levantado, assim
como o governo federal. Foi indicado que haveria uma medida provisória nesse sentido,
que seria com certeza um retrocesso e tanto para a educação, como para a área
da proteção da criança e adolescente já que, em casa, eles podem estar sujeitos
a abusos, violências, e explorações de diversos tipos, muitas vezes realizados
pelos próprios familiares.
ON: É mais uma redação incerta,
que pode dar origem a algo razoável, mas também a questões preocupantes. De
fato, há uma agenda com a qual o governo avança e preocupa ao passa que dá
ênfase à escolha das famílias em detrimento de uma política educacional
inclusiva, que olhe para o direito de todos. Isso pode caminhar no sentido
contrário ao que as legislações brasileiras têm há muito consolidado e promover
o enfraquecimento da instituição escolar.
AP: Ao sugerir a prática do
esporte em especial aos estudantes que se encontram em situação de
vulnerabilidade social se evidencia uma visão assistencialista, elitista, que
não cabe mais dentro de todo o avanço político e social do Brasil. A prática do
esporte deve ser promovida de maneira universal, através das escolas e
políticas educacionais, mas essa visão do esporte com ênfase às situações de
vulnerabilidade, é como se o governo disse que não vai fazer políticas sociais,
de fato, de justiça social.
ON: O esporte tem um papel
fundamental não só do ponto de vista profissional, mas enquanto elemento
social, e precisa ser melhor articulado à educação, até via componente
curricular da Educação Física. Mas restringir o desafio da vulnerabilidade, de
alunos de contextos vulneráveis, à prática do esporte é uma visão absolutamente
restrita e equivocada. Pra gente, de fato, conseguir enfrentar o desafio educacional
em regiões mais vulneráveis há de se levar em conta uma série de outros
fatores, alguns da própria escola, mas também os extra escola, na área da
saúde, assistência social. É uma visão muito pequena para um desafio muito
grande, que não toca na questão da desigualdade.
AP: Essa agenda de
revisão dos currículos é antiga, bem como a intervenção no Programa Nacional de
Livros, na formação dos professores, justamente para ter um controle maior
do conteúdo da educação, indo ao encontro das agendas fundamentalistas que eles
têm promovido, bem como revisionismos, negacionismos e até perseguição a
agendas políticas e de promoção das diversidades, assim como pauta o Escola Sem
Partido. É bastante grave essa menção, ainda que não explícita, mas no
entrelinhas pode dar forma a uma proposta de retrocessos para a área.
ON: Entendo que a redação é
genérica, pode caminhar para um lado positivo, como negativo, não fica claro.
Mas sobre as metodologias de ensino, há um locus que é de atribuição do ministério
da Educação e do qual ele tem se esquivado que é a formação inicial de
professores, um dos principais gargalos da educação básica brasileira. Há
poucos avanços na últimas décadas nesse sentido. O Conselho Nacional de
Educação aprovou no fim do ano passado um novo conjunto de diretrizes
curriculares nacionais para formação inicial de professores, um documento que
não é perfeito, mas aponta no sentido que o Brasil precisa avançar, que o país
tenha uma sólida formação docente inicial que o prepare esse profissional para
o exercício da docência, articulando bem teoria e prática. Isso está aprovado
há quase um ano e a sua implementação depende de avanços do ministério da
Educação, e até agora não se ouviu absolutamente nada sobre o tema.
AP: É preciso esclarecer o que eles consideram com essa reorganização e o que significa ela ser pautada em estímulo a vinculação a projetos de setores sociais e produtivos. Isso porque existe uma agenda explícita de apontar que faculdades e universidades que têm departamentos com foco na agenda das humanidades teriam menos importância no desenvolvimento tecnológico do Brasil, uma visão bastante utilitarista, objetivista e muito liberal das pesquisas em humanidades.
ON: Há experiências em curso no País de vinculação aos setores produtivos e com a sociedade, de modo mais geral, acho que esse é o ponto. Nos locais em que há de fato um sistema parrudo, que preserva a autonomia das universidades, mas as inserem como contribuinte do esforço maior, essa articulação é absolutamente fundamental. No entanto, não significa que esse é o objetivo da universidade, não dá pra restringir a melhoria do ensino superior só a essa questão. A discussão é muito mais ampla, complexa e exige um pensamento muito mais sistêmico para avançar no sentido desejado.
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