Magistrado,
que atuou por 23 anos na Vara de Execuções Criminais da Capital,
afirma que considera "difícil recuar do que está posto hoje"
O
juiz Sidinei Brzuska trabalhou por 23 anos na Vara de Execuções
Criminais (VEC) de Porto Alegre. Ao longo destes anos, dedicou horas
para visitar presídios e penitenciárias e para ouvir relatos de
detentos. Em suas redes sociais, expôs fotos das mazelas a fim de
provocar e promover debates sobre temas nem sempre bem vistos pela
sociedade. Não foi diferente com as cantinas.
Abaixo,
confira trechos da entrevista de Brzuska a partir da reportagem feita
pelo Grupo de Investigação da RBS (GDI) sobre como as facções
utilizam produtos das cantinas oficiais para engordam o caixa do
crime:
Como
surgiu a ideia de implantar cantinas em presídios e penitenciárias?
O
artigo da Lei de Execução Penal (LEP) que trata disso foi escrito
com base em uma realidade do início dos anos 1980. Maioria da
população brasileira vivia em áreas rurais. As penitenciárias
ficavam distante. Familiares que fossem fazer visita enfrentavam
viagem longa, difícil, e quando chegassem na prisão tinham de se
alimentar, se hidratar. A ideia da cantina era esta. Não
é ideia de o Estado faturar dinheiro nem facção.
Por
que isso não se implementou?
Isso
se desvirtuou mais ou menos dentro da mesma ideia que fez nascerem as
milícias do Rio, de que bandido bom é bandido morto e que não
vamos tratar "vagabundo" bem. Essas
cantinas propostas quase que ingenuamente pelo legislador na lei de
1984 nunca foram implantadas e
os presídios foram abandonados. Vem essa questão de degradação
muito forte no país.
Como
foi no RS?
Vínhamos
nessa lógica de que bandido
tem de se dar mal. E
até aquele momento os presos não viam a cadeia como algo deles. E o
que não é meu eu não cuido, quebro, queimo. Assim como a população
de Porto Alegre, que não vê o Dilúvio como algo seu, então, joga
lixo. E essa sistemática de quebrar e queimar retroalimentava o
pensamento de que bandido não merecia ganhar colchão ou ter
melhorias. Quando a Brigada Militar assumiu o Presídio Central (em
1995), surgiu
na cadeia uma pessoa que viu a possibilidade de ganhar dinheiro no
caos. Um preso que passou a dizer para os outros: "Passamos
maior tempo do nosso tempo aqui dentro, recebemos nossa família,
nossos filhos, temos de cuidar disso aqui". Ele vendeu a ideia
de melhorias para a direção, em troca de acabar com os motins e os
estragos. Criou uma ala que tinha colchão, coberta, papel higiênico,
coisas que as outras não tinham. E começou a cobrar para receber
presos ali. Como a comida era ruim e insuficiente, negociou entrada
de fogareiros, fogões, geladeira. Mas como tudo isso dava muito
trabalho para os guardas revistarem, o Estado teve a ideia de ele
mesmo prestar o serviço e isso foi regulado por uma portaria da
Susepe. Foi assim que as cantinas oficiais começaram. O aluguel do
metro quadrado da cantina do Central se tornou o mais caro de Porto
Alegre.
E
agora, no ponto que chegou, com controle de subcantinas pelas
facções, qual a solução?
O
grande problema é o Estado tratar mal o familiar dos presos. A
cantina acaba servindo como forma de captação e engrossamento das
facções. Estou
preso e minha mãe sai lá da cidade dela às 5h da manhã, pega
trem, ônibus, fica na fila, passa pela revista e aí vai me
encontrar lá pelas 10h, 11h da manhã. Até
aí ninguém do Estado apareceu para dar uma água ou pão para minha
mãe. Quem dá? Quem administra a galeria. Quem
alimenta minha mãe é dos Manos? Eu sou dos Manos. É dos Bala na
Cara? Eu sou dos Bala. A
comida é a forma de arregimentar. O Estado não é acolhedor com
esse pobre que visita a cadeia ou que está dentro da cadeia.
Não
tem solução então?
Não
acredito, pois passa por acolhimento. O Estado não dá uma cobertura
para os visitantes se abrigarem em dia de chuva. Difícil recuar do
que está posto hoje. A lista de itens permitidos não é tão
grande, mas vai ver o que as cantinas vendem, é muita, muita coisa.
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sexta-feira, 3 de novembro de 2023
"As cantinas não foram criadas para o Estado ou as facções ganharem dinheiro", diz o juiz Sidinei Brzuska sobre esses comércios
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