Servidores,
técnicos e cientistas propuseram medidas que poderiam diminuir impacto do
desastre
No final de outubro do ano
passado, o governo de Eduardo Leite (PSDB) anunciou a criação do Programa de
Estratégias para as Ações Climáticas, o ProClima 2050, descrito como um roteiro
para ações e medidas de mitigação dos efeitos e de adaptação Rio Grande do Sul
diante da emergência climática. Naquele momento, os desastres climáticos já se
sucediam desde março, fechando 2023 com um total de 81 mortes em diversas
regiões do estado, conforme a Defesa Civil gaúcha. Um plano anterior, a
Política Estadual de Gestão de Riscos de Desastres, de 2017, já havia sido
engavetado, como mostrou reportagem da Agência Pública do ano passado.
O ProClima, porém, até agora não resultou em medidas concretas
do governo, segundo fontes ouvidas pela reportagem. “O governador Eduardo Leite
ignora qualquer alerta ambientalista e do corpo técnico da Sema [Secretaria de
Meio Ambiente e Infraestrutura] e da Fepam [Fundação Estadual de Proteção
Ambiental]. Suas ações afrouxam os regramentos ambientais, sucateiam a
estrutura pública, contribuindo para agravar as vulnerabilidades diante desse
evento climático extremo”, resume o ambientalista e biólogo Rafael Altenhofen,
presidente do Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio Caí, uma das mais afetadas
pelas águas tanto no ano passado como neste ano.
Altenhofen, que também é coordenador da União Protetora do
Ambiente Natural (Upan), mora em Montenegro, um município obrigado em Termo de
Ajustamento de Conduta (TAC) a contratar estudos de áreas de risco há mais de
20 anos. Segundo ele, já foram feitos nove estudos semelhantes pagos com
dinheiro público, além de outros feitos por universidades e outras
instituições, que não foram traduzidos em ações pelo governo.
“De tempos em tempos contratam novos, ignorando os anteriores,
talvez por seus resultados contrariarem interesses de certos empresários. Eles
desejam que a ciência valide certas vontades prévias. Como isso não acontece,
nada foi feito para reduzir as vulnerabilidades”, diz o biólogo.
Entre os estudos pagos pelo governo está, por exemplo, o
Zoneamento Ecológico Econômico (ZEE) – previsto na Política Nacional do Meio
Ambiente e definido como instrumento da Política Estadual do Meio Ambiente (Lei
15.434/2020). O trabalho, que trata da organização do território, estabelece
medidas e padrões de proteção ambiental, levou mais de quatro anos para ser
elaborado, contou com intenso envolvimento de servidores, instituições e da
sociedade civil e foi pago com dinheiro público. Mas também acabou em alguma
gaveta da Sema.
Foi com surpresa, portanto, que ele e outros especialistas
ambientais do Rio Grande do Sul tomaram conhecimento pela imprensa de que
agora, com a catástrofe em curso, um grupo de empresários sugeriu ao governo do
estado contratar empresa ou especialista em evitar catástrofes. “Inacreditável!
Então tudo que se aprendeu, ensinou, se fez e divulgou no Rio Grande do Sul, em
ciência e tecnologia, não é suficiente?”, pergunta, lembrando que o estado
dispõe de gente capacitada para evitar e prevenir catástrofes, mas que nunca
são ouvidas pelos tomadores de decisão do Executivo.
O professor Francisco Aquino, do
Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).,
em novembro do ano passado, já havia chamado atenção para a probabilidade de
ocorrerem novos eventos extremos em 2024, como tempestades extremas e
inundações, por influência do El Niño, o que, infelizmente, se confirmou.
Suas declarações foram feitas no
seminário “Realidade das mudanças climáticas: os desafios da governança e da
reconstrução”, promovido pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul para
anunciar o GabClima, um gabinete para dar subsídios para “estimular, induzir ou
até cobrar do Poder Público algumas medidas emergenciais ou a médio e a longo
prazos de forma contínua”, nas palavras do promotor Regional Ambiental da Bacia
dos Rios Taquari-Antas, Sérgio Diefenbach.
Aquino é chefe do Departamento
de Geografia da UFRGS, onde os docentes lançaram na sexta-feira, 10 de maio, um
manifesto em que explicitam: “Nosso curso é atual e pode oferecer inúmeras
soluções para a crise que enfrentamos face aos desastres naturais que assolaram
as regiões mais populosas do Estado”.
Questionada pela Agência Pública
sobre o ProClima, a assessoria de imprensa da Sema enviou nota informando que
uma das iniciativas no âmbito do programa foi a criação de um grupo de trabalho
para conectar secretarias de estado, instituições e pesquisadores no
monitoramento e implementação de ações práticas de resposta à crise do clima.
Afirma também que, entre as medidas em andamento, estão a contratação de
serviço de radar meteorológico pela Defesa Civil na região metropolitana de
Porto Alegre que está em fase final de implementação; melhorias na Sala de
Situação – responsável pelo monitoramento das chuvas e dos níveis dos rios –; e
a implementação do roadmap climático dos municípios, que mapeará as ações
relacionadas ao clima em esfera municipal.
Recomendações
de técnicos dos órgãos ambientais do estado são ignoradas
Técnicos concursados dos órgãos
ambientais também vêm denunciando desde o primeiro mandato de Leite a
insuficiência de pessoal para lidar com os impactos da crise climática,
incluindo a pouca atenção dada à prevenção e ao atendimento aos desastres.
Segundo os servidores, há também a necessidade de concurso público para suprir
a falta de pessoal em divisões como a de Meteorologia, Mudanças Climáticas e
Eventos Críticos do estado.
Em setembro de 2023, depois das
tragédias do Vale do Taquari, a Associação dos Servidores da Sema (Assema)
enviou um ofício à secretária de Meio Ambiente, Marjorie Kauffmann, destacando
que os servidores estavam dispostos a “a reforçar à sociedade e ao Governo do
Estado o compromisso e a competência de seus servidores para auxiliar na
construção de alternativas para superar aquele cenário de destruição” e
sugerindo ações e medidas imediatas.
Entre elas a de iniciar
imediatamente a análise da inscrição de imóveis no Cadastro Ambiental Rural
(CAR), pelo menos em áreas especialmente protegidas, prioritárias para
conservação ou em maior risco de desastres naturais. “Infelizmente não tivemos
retorno”, comenta o presidente da Assema, Pablo Pereira, lembrando que o Rio
Grande do Sul é um dos estados mais atrasados do país nas análises do CAR.
Os servidores propuseram também
o melhor aproveitamento do quadro técnico da secretaria para implementar a
regulamentação do Programa de Regularização Ambiental (PRA), pois há um
expressivo passivo de adequação à legislação para áreas de preservação permanente
(APP), de uso restrito e reserva legal. “O atraso em sua implementação fez com
que se tenha deixado de exigir até o momento a recuperação de milhares de
hectares, principalmente em áreas de maior risco, frente aos eventos climáticos
que exercem importante papel na minimização de seus efeitos, como estiagens e
enchentes”, aponta o documento.
Outro item identificado como
prioridade pelos servidores foi a retomada do debate sobre a Política Estadual
de Gestão de Riscos de Desastres, que já poderia ter sido encaminhada para
apreciação da Assembleia Legislativa. Um dos argumentos é que o Brasil é
signatário do Marco de Ação de Sendai para Redução do Risco de Desastres e
existe uma proposta, que poderia ser aproveitada, construída com ampla
participação popular e financiamento do Banco Mundial, que destinou R$ 670 mil
em 2017 para a formulação do projeto, que poderia ter reduzido a gravidade dos
estragos na situação que vivem os gaúchos agora.
A Assema ainda manifestou a
necessidade de fortalecer a atuação dos Comitês de Bacia Hidrográfica,
instrumentos da Política Estadual de Recursos Hídricos, que não recebem
recursos para suas ações essenciais. Seus membros atuam totalmente de forma
voluntária, o que distorce a representatividade dos comitês, com a presença
desproporcional de pessoas que defendem interesses de empresas, por exemplo.
“Dinheiro
do próprio bolso” dos trabalhadores na Defesa Civil
No início das chuvas deste ano,
quando a água ainda não tinha atingido a região metropolitana de Porto Alegre,
o Sindicato dos Técnicos Ambientais e Fundações (Semapi) publicou uma nota
criticando o governo por priorizar o discurso – e não as ações – em relação à
prevenção e adaptação à crise climática. De acordo com o sindicato, a falta de
recursos muitas vezes obriga os trabalhadores das defesas civis a colocar
“dinheiro do próprio bolso para resolver questões, o que é inconcebível”.
“Ainda em 2023, o governo do
Estado anunciou um orçamento de R$115 milhões para o enfrentamento de eventos
climáticos. No entanto, o que não especificou foi que o valor é a soma total de
recursos de três secretarias, do Corpo de Bombeiros e, por fim, a Defesa Civil,
misturando esta última com toda política para eventos climáticos extremos. Já
no Orçamento 2024 aprovado, o recurso relevante previsto é de R$ 2,5 milhões
para qualificar o Centro de Operações da Defesa Civil – um valor que não chega
nem perto do necessário para resolver as deficiências estruturais” , afirma o
sindicato.
Outra solicitação que também não
teve resposta da Sema, feita em novembro de 2023, veio da Rede Sul de
Restauração Ecológica, uma iniciativa lançada em 2021 que conta com
representantes da própria secretaria, entre mais de uma centena de integrantes
de instituições públicas e privadas que trabalham na cadeia da restauração de
ecossistemas florestais e campestres nos biomas Pampa e Mata Atlântica.
Em ofício enviado duas vezes
para a Sema e uma para o governador Eduardo Leite, a Rede Sul se ofereceu para
colaborar para a recuperação de áreas degradadas nos dois biomas, mas foi
sumariamente ignorada. “Nos colocamos à disposição para contribuir com nossa
expertise no processo de implementação do Tratado da Mata Atlântica no âmbito
do Estado do Rio Grande do Sul; tratado este recentemente noticiado e firmado
entre os representantes de sete Estados Brasileiros que compõem o Consórcio de
Integração Sul e Sudeste (COSUD), com a perspectiva de plantio de mais de 100
milhões de árvores de espécies nativas”, dizia o ofício.
Essa inatividade da gestão
estadual acaba por comprometer inclusive o cumprimento da já fragilizada
legislação ambiental, como explica o promotor de justiça Sérgio Diefenbach, que
acompanhou de perto as tragédias no Vale do Taquari. “Muitas vezes nós temos a
expectativa de que a lei, por si só, resolva as situações. Precisa vontade
política de implementação da lei e muitas vezes o Ministério Público é o
propulsor da implementação desta lei”, diz.
Para Diefenbach, embora tenhamos
uma das maiores estruturas de legislação ambiental do mundo, é difícil a
implementação de algumas leis. “Nós ainda convivemos com uma legislação
oscilante. Ou seja, conforme linhas de governo vão, alguns regramentos são amaciados
e afrouxados. Em outros momentos, são criadas estruturas de maior rigor e
fiscalização”, diz, usando como exemplo a legislação de recursos hídricos.
“Isso não se resolve por ação judicial. É preciso criar uma consciência
coletiva e de gestão da necessidade da existência deles.”
O promotor destaca que o mesmo
acontece com relação ao desmatamento, à disposição de resíduos sólidos e
líquidos, na concessão de licenças e na fiscalização pelo estado, entre outras
ações de controle. “Sem a presença forte de Estado fiscalizador por todos os
seus entes, não há legislação que sobreviva”, conclui.
Para ele, as mudanças climáticas impõem um novo pensamento sobre a ordem das cidades. E isso é uma tarefa que envolve uma construção coletiva. Exigirá compreensão dos poderes legislativos, do Executivo, das forças econômicas. “Precisamos dar uma guinada de posicionamento nas nossas condutas. E a postura do Ministério Público é de contribuir para que isto aconteça.”