Na primeira cena do documentário Justiça,
de Maria Augusta Ramos, todo ele com cenas reais de audiências judiciais, vemos
um homem negro que deve responder a perguntas de um juiz em um processo
criminal no Rio de Janeiro. O magistrado pergunta se a denúncia é verdadeira,
ao que o réu, prontamente, responde “não, não é verdadeira não, senhor.”
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Presídio Central: enfim, a decisão corajosa de uma juíza enfrenta a lotação desumana da pior cadeia da América Latina |
Então, o juiz quer saber como se deu a prisão, ao
que o acusado responde que estava na rua, no carnaval, que “saiu uma correria”,
que alguns policiais estavam atirando, que procurou uma rua lateral para se proteger
quando três homens, que fugiam da polícia, passaram por ele. Na sequência, foi
preso; o único preso.
O primeiro detalhe: os fugitivos eram suspeitos de
terem praticado um arrombamento após a escalada de um muro. O segundo detalhe:
o homem negro preso é cadeirante, não tem uma perna e a outra é tão fina que
parece só osso.
O réu começa a relatar ao juiz que os policiais o
derrubaram da cadeira de rodas e bateram nele, produzindo lesões. Nisso, é
interrompido pelo magistrado que, impávido, dita o depoimento, omitindo todo o
relato e fazendo constar apenas a negativa de autoria e a afirmação de que o
réu não conhecia os três “elementos”.
O homem negro solicita que seja determinada sua
remoção para um hospital, porque, na 25ª delegacia, onde ele está preso
preventivamente, há 79 pessoas na cela e ele precisa se arrastar para defecar.
O magistrado, então, diz: “Só posso fazer isso se
houver uma solicitação médica, porque esse é um assunto médico, não um assunto
de juiz”. Depois disso, o juiz pergunta há quanto tempo o réu está na cadeira
de rodas. O homem responde que é cadeirante desde 1996.
O magistrado, então, aparentando surpresa,
pergunta: “Mas o senhor estava na cadeira de rodas quando foi preso?”
“Claro, doutor, estava na cadeira.”
Possivelmente, o tema também não constituía
“assunto de juiz”, afinal, o que a situação kafkiana de um
cadeirante estar sendo acusado de um arrombamento com escalada tem a ver com a
noção de Justiça?
O que a condição de 79 pessoas empilhadas em uma
carceragem de uma delegacia de polícia constitui “assunto de juiz”?
E o que uma denúncia de uma pessoa com deficiência
que afirma ter sido espancada por agentes encarregados de fazer cumprir a lei
tem a ver com o ofício do burocrata que imagina “aplicar a lei”?
Alguém poderia pensar que essa seja uma situação
anômala, um ponto fora da curva. O trabalho de Maria Augusta Ramos, não apenas
esse Justiça, mas também Juízo,
seu documentário mais recente, ambos disponíveis na Netflix, sugere que não. O
que vemos na tela, em audiências reais com câmera fixa nos operadores do
Direito, é um padrão no tratamento com os pobres e os negros.
Os efeitos de uma postura correta e respeitosa de
uma autoridade pública sobre as pessoas são surpreendentes. As pesquisas do
professor Tom Tyler (Yale
University) demonstraram que, quando autoridades agem de forma justa e
respeitosa, essa conduta aumenta a adesão das pessoas à lei, fazendo com que
elas tendam a obedecer às autoridades, mesmo diante de decisão contra seus
interesses.
O livro de Tyler (2006) Why People Obey the
Law (Por que as pessoas obedecem à lei) inaugurou uma nova abordagem
conhecida como Procedural Justice (Justiça Procedimental),
demonstrando que comportamentos desrespeitosos, violentos e não profissionais
de policiais, promotores e juízes prejudicam os esforços de aplicação da lei,
porque reduzem as chances de as pessoas colaborarem com as investigações.
Ajuda
ou humilhação
Para a Justiça Procedimental, é preciso dar voz às
pessoas, e escutá-las com atenção. Os magistrados, especialmente, devem se
manter equidistantes das partes, reduzindo os riscos de pré-julgamento.
Explicando esses e outros princípios, a juíza Victoria Pratt, em palestra no projeto TED, conta a diferença entre
perguntar em uma audiência a uma pessoa que tem pouca escolarização ou tem o
inglês como seu segundo idioma:
“O senhor está tendo dificuldade de entender essa
papelada toda?” Ou simplesmente: “O senhor sabe ler?” Na primeira alternativa,
a pergunta é uma oferta de ajuda; na segunda, uma humilhação. Essa forma de se
relacionar com as pessoas mais simples e humildes pode mudar a qualidade do
acesso à justiça.
Lembrei disso porque, recentemente, a juíza Sonáli
da Cruz Zluhan, da 1ª Vara de Execuções de Porto Alegre, atendendo a pedido da
Defensoria Pública e aplicando jurisprudência da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, determinou que cada dia de pena cumprida no Presídio Central seja contado em dobro, tendo em
conta a superlotação e as condições desumanas de execução da pena.
A decisão, imediatamente contestada pelos adeptos
do “estado inconstitucional de coisas” em matéria penal, representa um gesto de
racionalidade e de respeito em um sistema que, há muito, tem dificuldades de se
conectar com a realidade da execução penal e com seus efeitos criminogênicos.
A boa notícia, portanto, é: sim, temos juízas e
juízes dispostos e mudar isso. Talvez sejam poucos, mas que diferença elas e
eles fazem!
Marcos Rolim é jornalista, doutor em Sociologia.
Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe