Governo
desfigurou Código Estadual do Meio Ambiente e sancionou construção de barragens
em áreas de preservação, entre outras medidas
Por Luciano Valleda
Poucos dias antes do
início das chuvas que infligem ao Rio Grande do Sul a sua maior tragédia
climática, a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) enviou
ao governador Eduardo Leite (PSDB) um ofício com o incomum título de “Alerta ao
Estado do Rio Grande do Sul e ao Governador do Estado”, seguido pelo subtítulo
que dizia: “Registro para fins de tomada de conhecimento sobre alertas emitidos
há várias décadas”. O documento foi entregue no último dia 26 de abril.
Logo no início, o ofício deixa claro o
objetivo de avisar o governador de que o mundo “está enfrentando uma crise
climática”. Antes de parecer estranho que a entidade ambientalista mais antiga
do RS e do Brasil se disponha a produzir um documento para informar Leite de
algo amplamente discutido no planeta, o ofício revela a péssima relação do
governador gaúcho com os ambientalistas do estado.
No documento, a Agapan enfatiza que a crise climática é
divulgada pela ciência e imprensa há várias décadas e explica que o problema
“tem o fator antropogênico como um de seus principais ingredientes de
intensificação, sem desconsiderar outros de caráter cíclico e universal que
possam somar”. Antropogênico, no caso, significa a ação do ser humano no meio
ambiente.
O parágrafo seguinte do documento expõe a distância que separa o
governador, apesar do figurino de colete da Defesa Civil quando a tragédia
acontece, e os ambientalistas que há anos criticam as medidas adotadas pelo
governo Leite.
“Neste sentido, alertamos que a falta de atitudes para estancar
e reverter processos que contribuem para o avanço da crise – a exemplo da
liberação de mais venenos agrícolas, da autorização para destruir Áreas de
Preservação Permanente, da falta de uma política permanente de recuperação de
matas ciliares, do incentivo anacrônico à construção de polos carboquímicos e
de instalações de infraestrutura que não reconheçam os direitos das comunidades
tradicionais, da falta de cuidados e ingerência dos recursos hídricos, entre
outros – será motivo de proposta de Ação Civil Pública de nossa parte. É apenas
um alerta com o objetivo claro de contar com a parceria para encontrar
‘soluções coletivas’ para estancar e fazer a nossa parte, enquanto povo gaúcho,
para ajudar a reverter as mudanças climáticas.”
No ofício, a Agapan afirma não poder mais,
por princípio de precaução diante da crise climática alertada há décadas, “ser
complacentes com governos que têm demonstrado pouca ou nenhuma sensibilidade
para a situação, em especial, da população mais vulnerável, que primeiro sofre
e sofrerá com a ampliação do ritmo de avanço das mudanças climáticas”.
Presidente da Agapan, Heverton Lacerda pondera que a crise
climática vivida no planeta pode levar séculos para ser revertida – ou nunca
ser. A única chance é se, nos próximos anos e décadas, as sociedades
conseguirem, de forma muito drástica, primeiro estancar tudo o que está
causando e ampliando a crise climática, e depois realizar ações para a
reversão.
“Não adianta apenas resiliência ou mitigação de danos. O que
precisa ser combatido é a causa da mudança climática. O que os governos estão
fazendo é ligado à questão da resiliência e da mitigação de danos, tirando a
população de locais atingidos, mas vão continuar fazendo aquilo que causa a
crise climática”, afirma, sem esconder na voz a insatisfação com os rumos da
política ambiental.
A calamidade que assola o RS, com 78 mortos
e mais de cem desaparecidos até o momento, número que tende a crescer nos
próximos dias, é uma “tragédia anunciada” na visão de Lacerda. “Não existe nada
que possa ser feito para evitar o próximo evento climático extremo que vai
acontecer porque estamos dentro da crise climática.”
Se no curto prazo há pouco a fazer, no médio e longo prazo a
perspectiva pode ser outra. O presidente da Agapan cita como prioridades a
recomposição das Áreas de Preservação Permanente (APP), a recomposição das
matas ciliares e o aumento do calado dos rios. A última medida com resultado
mais rápido.
“Desassorear rios seria uma solução de forma imediata, cara e
trabalhosa, mas o melhor seria a gente recompor as florestas”, defende. “Um dos
grandes problemas é o assoreamento dos rios por causa de um modelo agrícola de
desenvolvimento que desmata as bordas dos rios, tanto para construir casas
quanto lavouras. Nossos rios estão assoreados, nossas cidades estão sendo
construídas na beira dos rios, as encostas dos morros estão sendo impactadas,
mesmo quando têm vegetação já tiraram as árvores grandes com raízes profundas,
não é mais a mata natural.”
Ao citar os rumos para estancar a devastação ambiental que
influencia diretamente na mudança climática e abre caminho para a força das
águas dos rios, as divergências entre a Agapan (e outras entidades
ambientalistas gaúchas) e o governo Leite se tornam evidentes. Mais que isso,
explicam o ofício enviado poucos dias antes da atual tragédia causada pelas
enchentes.
“O governo do Rio Grande do Sul vai na contramão da ecologia.
Estamos regredindo na legislação ambiental enquanto estado que foi precursor na
criação de leis ambientalistas. Outros estados que criaram a sua legislação
ambiental, inclusive a nacional, se basearam no que foi criado aqui no Rio
Grande do Sul”, destaca Lacerda.
A revolta remonta ao começo do primeiro mandato de Leite, em
2020, quando o governador aprovou na Assembleia Legislativa a Lei 15.434.
Chamada de Novo Código Estadual do Meio Ambiente, a lei suprimiu ou
flexibilizou mais de 500 artigos e incisos do Código Estadual de Meio Ambiente
criado no ano 2000, afrouxando regras de proteção ambiental dos biomas Pampa e
Mata Atlântica.
Em outubro de 2023, já depois da trágica enchente que devastou o
Vale do Taquari, durante evento de lançamento do Plano de Governança e
Conformidade Climática, a secretária estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura
(Sema), Marjorie Kauffmann, chegou a dizer que o novo Código Estadual do Meio
Ambiente “trouxe mais elementos para analisar” o tema das mudanças climáticas.
“Quando entra um governo com essa visão mais neoliberal e
anti-ecológica, ele se baseia nas legislações de fora que estão mais
permissivas do que as nossas para fragilizar e enfraquecer a nossa legislação.
As que se basearam nas nossas foram criadas de uma forma mais flexível”,
explica o presidente da Agapan.
No mesmo evento
em outubro do ano passado, ao apresentar as ações de
enfrentamento às mudanças do clima que o governo estadual entende já teriam
sido realizadas, outros episódios que tiveram ampla repercussão negativa junto
as entidades ambientalistas do RS chamaram a atenção. Foi o caso do
Licenciamento por Adesão e Compromisso (LAC), conhecido como autolicenciamento
privado, criado em dezembro de 2021 e muito criticado
por afrouxar a fiscalização ambiental. A medida permite que 49
atividades econômicas, sendo 31 com alto e médio potenciais poluidores, sejam
autorizadas independente do seu porte.
Quando a LAC foi aprovada pelo Consema, o Centro de Estudos
Ambientais (CAE), sediado em Pelotas, declarou que o caso representou o “maior
retrocesso ambiental promovido por um governo nesse colegiado”. A ONG diz que o
órgão atualmente está dominado por uma aliança anti-sociedade e anti-natureza,
reunindo o governo estadual e o agronegócio, a indústria e a construção civil.
Ainda no evento de lançamento do Plano de Governança e
Conformidade Climática, entre as medidas listadas pelo governo estadual como
ações para enfrentar a crise climática no RS esteve a participação na
Conferência do Clima (COP 26), em Glasgow, e na COP 27, no Egito; a adesão ao
programa Race to Zero e Race to Resilience; a criação do Fórum
Gaúcho de Mudanças Climáticas; o incentivo a criação de Comissões Municipais
sobre Mudanças Climáticas; assim como a assinatura do protocolo de intenções
para a descarbonização das cadeias produtivas do RS e o Programa de
Desenvolvimento da Cadeia de Hidrogênio Verde no RS, entre outras ações
consideradas inócuas ou insuficientes pelas entidades ambientalistas do estado.
Discurso x
prática
No dia 14 de setembro de 2023,
enquanto as famílias no Vale do Taquari ainda choravam seu parentes mortos,
procuravam desaparecidos e contabilizam os prejuízos econômicos causados pela
enchente, o Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) aprovou a atualização do Zoneamento Ambiental para a
Atividade da Silvicultura (ZAS) no estado. Pela decisão, a alteração
será aplicada aos novos plantios ou na renovação dos plantios florestais já
existentes.
As áreas de plantios da
silvicultura passarão dos atuais 900 mil ou 1 milhão de hectares para 4 milhões
de hectares em cada Unidade de Paisagem Natural (UPN) x Bacia Hidrográfica
(BH). A silvicultura é o cultivo de florestas por meio do manejo agrícola, com
o objetivo de suprir o mercado de madeira e aproveitar o uso racional das
florestas. No RS, o eucalipto é um dos principais cultivos da silvicultura.
A mudança foi comemorada pela
secretária estadual do Meio Ambiente, Marjorie Kauffmann. A aprovação se
concretizou mesmo com os alertas de perda de biodiversidade feitos por técnicos
da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam). Membro do Consema, o
Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá) também emitiu parecer contrário a
mudança. No documento, a entidade afirmou que a aprovação poderá representar
uma “irreversível e extraordinária perda adicional ao Pampa e aos Campos
Sulinos”. O InGá ainda considerou que a proposta aprovada teve vício de origem
por ter sido elaborada por empresas contratadas pelo próprio setor a
ser regulado pelo governo estadual.
A empresa que construiu a
proposta foi a Codex, sob financiamento da multinacional chilena CMPC, e
protocolada no Consema pela Fiergs. No último dia 29 de abril, cerca de seis
meses após a mudança na regra e quando já chovia no RS, o governo estadual e justamente
a CMPC firmaram um protocolo de intenções para
a instalação de uma nova planta industrial de produção de celulose em Barra do
Ribeiro. Com aporte de R$ 24 bilhões da empresa, o negócio foi festejado pelo
governo como “um dos maiores investimentos privados da história do Rio Grande
do Sul”.
Recentemente, outro projeto com alto
potencial de impacto ambiental colocou Leite e entidades ambientalistas em
lados opostos. Trata-se da lei que flexibiliza ainda mais o Código Estadual de
Meio Ambiente para permitir a construção de barragens e açudes em Áreas de
Preservação Permanente (APP). O objetivo é proporcionar alternativas de
armazenamento de água para agricultura e pecuária, de modo a enfrentar períodos
de estiagem. Leite
sancionou no dia 9 de abril o projeto aprovado em março na Assembleia Legislativa.
Na ocasião da aprovação do projeto, Rodrigo Dutra, mestre em
Ecologia e integrante da Coalisão pelo Pampa, avaliou que a medida é
resultado da vulgarização dos conceitos de utilidade pública e interesse
social. “Em geral, são exceções para obras e empreendimentos de interesse
coletivo, e nos PLs entram várias atividades particulares como a irrigação e
até a mineração”, disse.
Para Dutra, o pano de fundo para a discussão sobre o tema é a
omissão estadual em implementar o Programa de Regularização Ambiental (PRA),
previsto desde 2012 para recuperar passivos de APPs e reserva legal nos biomas
Pampa e a Mata Atlântica – a Reserva Legal determina a preservação de no mínimo
20% de todo imóvel rural. Ele pontuou ainda que, segundo o Plano Nacional de
Recuperação da Vegetação Nativa (PLANAVEG), apenas no bioma Pampa deveriam
estar sendo recuperados 300 mil hectares de APPs e Reserva Legal. “Nada disso
está acontecendo, e o PL prevê destruir mais APPs para barragens”, lamentou.
Também após a aprovação pela Assembleia do projeto que
flexibiliza o Código Estadual de Meio Ambiente, a Agapan emitiu nota denunciando
o que definiu como a “destruição ambiental” que está sendo incentivada e
legalizada no estado. A entidade destacou haver muitas provas científicas sobre
o impacto das atividades humanas no planeta, com enormes danos ao meio
ambiente. E neste contexto de crise ambiental intensificada pelas mudanças
climáticas, disse que a nova lei aprovada no RS é “antiecológica” e
“irresponsável”.
Outro lado
Questionado pela reportagem
do Sul21 sobre as ações de enfrentamento a crise climática
implementadas desde a enchente de setembro do ano passado, o governo estadual
informou apenas que, neste momento, “trabalha 24 horas por dia com prioridade
total no resgate e atendimento às vítimas das chuvas históricas”, com toda sua
estrutura agindo de forma descentralizada e em conjunto com as forças nacionais
de segurança.
“Pensando na adaptação e
resiliência climática, em novembro de 2023 foi instituído o Gabinete de Crise
Climática, que tem como principal função conectar as secretarias de Estado,
instituições e pesquisadores no monitoramento e implementação de ações práticas
de resposta à crise do clima”, respondeu, em nota.
Entre as medidas em andamento
citadas pelo governo Leite para enfrentar a crise climática, estão a
contratação de serviço de radar meteorológico pela Defesa Civil, que será
instalado na Região Metropolitana de Porto Alegre e está em fase final de
implementação; melhorias na Sala de Situação, responsável pelo monitoramento
das chuvas e dos níveis dos rios; e a implementação do roadmap climático
dos municípios, que mapeará as ações relacionadas ao clima em esfera municipal.
“O governo reforça o seu
compromisso, neste momento, em garantir a vida e a segurança da população
gaúcha neste momento de emergência”, afirma, sem citar nenhuma das ações
defendidas pelos ambientalistas para mudar a trajetória dos futuros eventos
climáticos extremos.
Em novembro do ano passado, um
dia depois da Assembleia Legislativa aprovar o orçamento do governo estadual
para 2024, com receitas totais de R$ 80,3 bilhões e despesas totais de R$ 83
bilhões (um déficit de R$ 2,7 bilhões), o governo Leite celebrou a fatia do
orçamento de R$ 115 milhões para enfrentar os eventos climáticos no RS no ano
de 2024. O governo definiu o valor previsto como um “orçamento robusto”, embora
a cifra represente menos de 0,2% do orçamento total
aprovado.