Contratos com OSCs preveem repasses de até R$ 4,2 milhões para abrigos provisórios, enquanto CHA Vida opera com menos da metade da capacidade
A Prefeitura de Porto Alegre firmou, em julho deste ano, três contratos com Organizações da Sociedade Civil (OSCs), com valores que, somados, poderiam chegar a quase R$ 4,2 milhões, para a instalação de até 10 abrigos voltados para o acolhimento de desabrigados da enchente de maio na Capital. A expectativa era de que fossem acolhidas 50 pessoas por abrigo, totalizando 500 vagas. Contudo, em visita a dois dos abrigos já instalados na semana passada, a reportagem do Sul21 constatou que eles operavam com um número baixíssimo de desabrigados da enchente, inferior a 10 pessoas nos dois espaços.
Chama a atenção também o fato de que os contratos foram firmados após a abertura do Centro Humanitário de Acolhimento (CHA) Vida, no bairro Rubem Berta. Montado pelo governo do Estado em parceria com a Agência da Organização das Nações Unidas (ONU) para as Migrações (OIM), que faz a gestão, o CHA Vida tem capacidade para receber 848 pessoas, em instalações individualizadas para famílias ou coletivas para homens e mulheres solteiros, com amplo refeitório e espaços e suplementos adequados para que desabrigados possam permanecer ao menos por seis meses.
O prefeito Sebastião Melo participou, em 6 de junho, do ato de assinatura do termo de cooperação para instalação e manutenção dos CHAs, que originalmente deveriam ser três em Porto Alegre, mas apenas um foi instalado em razão da falta de demanda. Em 11 de julho, quando o CHA Vida foi inaugurado, Melo mais uma vez esteve presente. “Esse esforço coletivo vai devolver o mínimo de dignidade às pessoas que perderam tudo nas enchentes de maio”, disse, na ocasião.
Desde a abertura do Centro, o espaço tem operado bem abaixo de sua capacidade total. De acordo com os dados atualizados no final da tarde desta quarta-feira (21) no painel de Monitoramento de Abrigos Eventos Adversos 2024 do governo do Estado, Porto Alegre tem 510 pessoas desabrigadas acolhidas em 10 instituições, sendo 332 delas no CHA Vida.
Na última sexta-feira (16), a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) informou à reportagem que a Prefeitura registrava 158 pessoas em acolhimento em sete abrigos parceirizados, o que incluía 90 pessoas em situação de rua e, os demais, desabrigados da enchente. Além disso, outros dois abrigos voluntários em processo de desmobilização estavam acolhendo 69 pessoas. Nesta quarta-feira, em resposta a questionamentos encaminhados pela reportagem, a Fasc atualizou a informação para seis abrigos parceirizados e três abrigos voluntários.
A Fasc não divulga o nome e os locais dos abrigos parceirizados, mas conforme apurado pela reportagem, estes espaços estavam localizados nos seguintes endereços: Abrigo do Centro Assistencial Paz, Rua Tarcila Moraes Dutra, 799; Abrigo do SESI, Rua Paulino Gonçalves Barcelos, 307; Abrigo Solidariedade, no Ginásio do DEMHAB, Conde D’Eu, 66; Abrigo Esperança, Estrada João Antônio Silveira, 2500; Abrigo Brum: Estrada João Antônio Silveira, 5315; e Abrigo Mulheres, Rua Canto e Melo, 269. O Sul21 obteve a informação de que abrigo Brum foi fechado nesta semana, sendo realocado para outro lugar na Restinga. A Fasc não confirma a informação e não esclarece se esta é a diferença entre o número informado na semana passada e atualmente. Também não esclarece se a realocação ocorreu para o Abrigo Esperança, localizado também na Estrada João Antônio Silveira.
Em 23 de julho, a Fasc assinou um termo de colaboração com a Associação Vivendo Atos 29 para a instalação de até sete alojamentos em caráter excepcional para famílias e indivíduos atingidos pela emergência ou calamidade. O contrato, com previsão de vigência de três meses a partir da assinatura — podendo ser prorrogado mediante aditivo por solicitação da organização beneficiada –, tem valor previsto de até R$ 2.918.465,20.
Conforme o contrato, as verbas são repassadas em quatro vezes. A primeira, a título de verba de implantação, corresponde à previsão e repasses de R$ 59.500 por alojamento, até um máximo de R$ 416.500 com a instalação dos sete alojamentos. A partir daí, prevê o pagamento de três parcelas de R$ 119.141,20 por alojamento, totalizando R$ 833.988,40 em caso de implantação dos sete alojamentos.
Em 24 de julho, a Fasc assinou um novo contrato, com o Centro Assistencial Paz (Capaz), para a instalação de até dois alojamentos e valor previsto de até R$ 833.847. Da mesma forma que o contrato anterior, a previsão era do repasse de R$ 59.500 por alojamento a título de verba de implantação e três parcelas de R$ 119.141,20 por alojamento, totalizando um valor máximo de R$ 238.282,40.
Em 29 de julho, foi firmado o terceiro contrato, com a Fundação Solidariedade de Formação e Capacitação de Trabalhadores (Fundsol) para a oferta de um alojamento provisório, com valor previsto de R$ 416.923. Da mesma forma, o pagamento se daria por meio de um repasse de R$ 59.500 e três parcelas de R$ 119.141,20.
Conforme já dito, a Fasc não informa quantos alojamentos teriam sido instalados no âmbito de cada contrato, mas a informação que o Sul21 obteve é de que a OSC Capaz é responsável pelo alojamento da Rua Tarcila Dutra e de que a Fundsol opera o do Ginásio do Demhab, sendo os demais geridos pela Atos 29.
Os três contratos possuem termos idênticos quanto à remuneração, não condicionando o pagamento ao número de pessoas atendidas, apenas à implantação do alojamento. A reportagem questionou a Fasc se os repasses seriam feito integralmente mesmo os alojamentos permanecendo longe de suas capacidades totais, conforme corroborado pela própria Fasc e pelos números do painel de monitoramento. A entidade respondeu, em nota, que “já solicitou a redução de metas e de acordo com os Termos de Parceria, os saldos financeiros de recursos repassados e não utilizados devem ser restituídos à Fundação”. Os três contratos preveem a restituição dos saldos financeiros em caso de não utilização e estabelecem que as OSCs devem utilizar os recurso conforme Planos de Trabalhos aprovados pela Fasc.
Trabalhadores da Fasc ouvidos pela reportagem em condição de anonimato relataram que encontraram situações inadequadas ao visitarem as instalações, como colchões colocados no chão, falta de refeitório, o que obrigava os acolhidos a comerem quentinhas em mesas de plásticos — situação verificada em um dos abrigos — ou de forma improvisada, entre outras condições precárias que contrastariam com as dependências disponíveis no CHA Vida. Além disso, destacaram que os espaços operavam bem abaixo da capacidade, conforme constatado pela visita da reportagem aos abrigos Brum e Esperança.
Os trabalhadores também relataram que uma das justificativas para a instalação dos espaços provisórios para além do CHA Vida era o fato de que, inicialmente, o espaço tinha critérios que não comportavam todos os abrigados, mas que estas condições foram retiradas posteriormente. O encaminhamento para o CHA é de responsabilidade da Prefeitura de Porto Alegre.
Questionada pela reportagem, a Fasc afirmou que as famílias e ou indivíduos que necessitam de acolhimento até recuperar a casa definitiva são encaminhadas para o Centro Humanitário de Acolhimento. As demais, que não se enquadram nos requisitos e aguardam os benefícios emergenciais, permanecem em alojamentos provisórios.
Quando a reportagem visitou o abrigo Brum, instalado ao lado de uma loja de brinquedos de playground — Brinquedos Brum –, 40 pessoas estavam abrigadas, todos homens, sendo 33 da Operação Inverno e apenas 7 desabrigados da enchente. A Operação Inverno, voltada para acolher pessoas em situação de rua, havia encaminhado os acolhidos ao abrigo Brum na semana anterior.
O abrigo é um grande galpão, com uma mesa de refeição no centro. Os acolhidos da enchente estavam localizados de um lado, enquanto os demais posicionado do outro lado do galpão.
Em conversa com a reportagem, acolhidos disseram que estavam sendo bem tratados. Um deles, que se identificou como Jorge Henrique, tinha chegado dois dias antes ao local, levado por um micro-ônibus. Ele é morador de rua no Centro de Porto Alegre. Para além da identificação do comércio vizinho, o alojamento não possui nenhuma identificação externa. A fachada é composta por uma porta de ferro, diante da qual, durante a visita, os abrigados secavam colchões e roupas, a poucos metros da rua.
Na resposta ao Sul21, a Fasc informou que mantém uma estrutura de retaguarda para atendimento à população em situação de rua em dias de frio intenso. “Estão disponíveis para acolhimento albergues, Centros Pops e serviços de acolhimento institucionais”, diz a nota. A Fasc não esclareceu os motivos pelos quais pessoas em situação de rua estavam sendo abrigadas em alojamentos contratados para receber desabrigados das enchentes.
No alojamento Esperança, funcionários da Atos 29 informaram que o local já chegara a acolher 35 desabrigados da enchente, diante de uma capacidade total de 50 pessoas, mas apenas quatro eram acolhidas no momento da visita — dois moradores do Menino Deus, um do Humaitá e um do Farrapos. Apesar do reduzido número de moradores, três policiais militares estavam presentes no local para fazer a segurança, número superior ao de pessoas abrigadas no momento — o espaço permite a entrada e saída durante o dia.
Um dos moradores chegou a ser acolhido no CHA Vida, mas retornou porque não havia se adaptado. Como os acolhidos tinham histórico de situação de rua, a dificuldade de adaptação ao espaço gerido pela OIM estaria relacionado à falta de liberdade para realizarem suas atividades em qualquer horário.
Questionado pela reportagem sobre os motivos para todos os acolhidos em abrigos provisórios não terem sido encaminhados para o CHA Vida, o Gabinete do Vice-Governador do Estado, que é responsável por supervisionar os centros de acolhimento, reforçou que a seleção e o encaminhamento das pessoas é feito pelas prefeituras. Contudo, pontuou que o município de Canoas zerou o número de desabrigados em alojamentos provisórios, dado que consta no painel de monitoramento.