Governos estaduais concederam R$ 84 bilhões em incentivos, incluindo benefícios a empresas investigadas por relação com trabalho escravo
Por Luís Gomes
Sul21
Um estudo elaborado pelo Departamento Intersindical de
Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) aponta que, entre 2015 e 2022,
os incentivos fiscais concedidos pelo governo do Rio Grande do Sul cresceram
71,6%, acima da inflação acumulada no período, que foi de 61% (INPC). No mesmo
período, o conjunto dos servidores recebeu apenas um reajuste geral, de 6%, em 2022.
Para a Frente de Servidores Públicos (FSP/RS), os dados indicam que não
procedem as justificativas dadas pelos governos José Ivo Sartori (MDB) e
Eduardo Leite (PSDB) para o congelamento salarial do funcionalismo.
O Dieese chama a
atenção que, entre 2015 e 2022, segundo dados da Secretaria da Fazenda do Rio
Grande do Sul (Sefaz-RS), o Estado abriu mão de R$ 81.968.128.823 (81 bilhões)
de arrecadação a título de desonerações fiscais relativas aos tributos ICMS,
IPVA e ITCD. Em valores atualizados pelo IPCA até dezembro de 2022, este
montante sobe para R$ 84,6 bilhões.
Além disso, ao contrário dos servidores, que
tiveram os salários congelados, as desonerações cresceram 71,6% no período.
Somavam R$ 8 bilhões por ano, em 2015, e passaram para R$ 13,7 bilhões no ano
passado. As renúncias fiscais de 2022 representam 21,8% das receitas que o
Estado poderia obter. O Dieese pontua ainda que o percentual de renúncias
fiscais representa mais do que o dobro do que é concedido pelos estados de São
Paulo e Minas Gerais.
Levando em conta
apenas o primeiro mandato de Eduardo Leite (2019-2022), a inflação acumulada
foi de 28,6%, enquanto as renúncias fiscais nesse período cresceram 40,7%.
Entre novembro de 2014 e julho de 2023, a
inflação calculada pelo INPC subiu 67,06%. Descontado o reajuste de 6%
concedido ao quadro geral em 2022, para recuperar as perdas inflacionárias do
período, seria necessário conceder um reajuste de 57,6% aos servidores.
Pelos cálculos do Dieese, se o governo
tivesse mantido os salários do conjunto de servidores sem perdas inflacionárias
no período, teria gasto cerca de R$ 7 bilhões a mais entre 2015 e 2022, o que
representa menos de 10% das isenções concedidas no período e não representa
sequer o que o RS deixou de arrecadar com desonerações em 2015.
“Na execução das políticas públicas naquilo
que tange às grandes empresas, ao capital, ao agronegócio, o governo não só
manteve, como aumentou consideravelmente as suas políticas de incentivo de
desoneração de isenções fiscais. E nós estamos pagando o preço”, diz o
vice-presidente do Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul
(Cpers), Alex Saratt. “O governador fez caixa, e reconhece isso, com base nas
privatizações, com os recursos extras que vieram da União, com a suspensão do
pagamento da dívida pública, mas especialmente massacrando os servidores e
destruindo os serviços públicos. E, ao mesmo tempo, temos uma política de
isenções e renúncias fiscais, que poderiam até ser admissíveis, desde que
discutidas dentro de um projeto de desenvolvimento para o Estado. Mas o que nós
temos são concessões dadas ao sabor das conveniências e dos contatos
políticos”.
Presidente do Sindicato dos Servidores de
Nível Superior do Poder Executivo do Rio Grande do Sul (Sintergs), Antonio
Augusto Medeiros argumenta que não há um controle por parte do governo do
Estado sobre o retorno das isenções fiscais à população. “Não temos comprovação
de que essas isenções têm o acompanhamento necessário para ver o que elas,
efetivamente, deixam para o estado do Rio Grande do Sul. Nós vivemos num estado
completamente estagnado, com uma política de naturalização, onde quem mais
sofre é a população que mais precisa de serviço público”.
Sobre a concessão de benefícios fiscais, a
Sefaz defende que o governo do Estado vem propondo diversos debates sobre o
tema, tendo realizado em 2020 um estudo que apresenta um diagnóstico sobre os
benefícios fiscais concedidos no Rio Grande do Sul. Pontua também que o tema
está sendo novamente tratado na Reforma Tributária Nacional, o que deve colocar
fim aos incentivos fiscais até 2032.
“Do total, de desonerações do ICMS (de 2022),
de R$ 11,8 bilhões de benefícios, cerca de metade são de desonerações para
consumo e outra metade para investimentos das empresas. E as revisões, em
geral, dependem da anuência do Poder Legislativo”, afirma a Sefaz.
O governo do Estado forneceu a lista com
todas as empresas e benefícios ao Tribunal de Contas do Estado em setembro de
2019, mas a Sefaz informou a reportagem que ela não pode ser divulgada pois é
resguardada pelo sigilo fiscal das empresas. Até o momento, não foram
divulgados os resultados das análises do Tribunal, que poderiam revelar quantos
empregos foram criados e se houve desenvolvimento econômico em diferentes
regiões.
A respeito do número de R$ 13 bilhões em
desonerações apontado pelo Dieese, a Sefaz explica que ele inclui as
desonerações das exportações da Lei Kandir, que se trata de uma legislação
federal válida para todos os estados e que não pode ser alterada em âmbito
estadual.
“Os benefícios fiscais são um dos principais
instrumentos que os Estados dispõem para tentar fomentar o crescimento
econômico, interferindo na economia e na trajetória de desenvolvimento de médio
e longo prazos, além de beneficiarem parte da população mais carente nas
isenções do consumo”, argumenta a Sefaz.
Anelise Manganelli, economista e técnica do Dieese, destaca que os
impactos das desonerações fiscais sobre as finanças públicas são subestimados
pelos governos. “No Rio Grande do Sul, a renúncia de recursos equivale a um
orçamento público anual a cada 5 anos, sem que haja uma avaliação adequada
dessa política pública”, afirma.
Anelise pontua também que os efeitos efetivos da reforma tributária só
serão sentidos em 2033. “O Rio Grande do Sul não pode esperar uma década para
ver mudanças significativas nesse aspecto. Os municípios são diretamente
afetados por essas renúncias, experimentando reduções nas receitas, como na
cota parte de ICMS e IPVA, e muitos já enfrentam dificuldades financeiras em
2023. O cumprimento dos mínimos constitucionais é distorcido, observa-se que o
Rio Grande do Sul deixou de investir cerca de R$ 10 bilhões na saúde e R$ 21,1
bilhões na educação ao longo de oito anos”, diz.
Entre os benefícios fiscais que estão sob o controle do Estado, o
principal é o Fundo Operação Empresa do Estado do Rio Grande do Sul (Fundopem),
programa governamental de incentivo ao setor privado.
No início de julho, o governo do Estado informou que Fundopem atingiu R$
1,7 bilhão em incentivos de janeiro a junho deste ano, alcançado o total de
benefícios aprovados no ano de 2022. O montante contemplou 67 projetos com
geração de 1.733 empregos diretos.
De acordo com os dados disponibilizados pelo governo, 11 novas empresas
aderiram ao Fundopem, com previsão de incentivos fiscais da ordem de R$ 128,5
milhões e 192 empregos diretos gerados. Entre as empresas contempladas está a
Braslux Indústria de Autopeças, que recebeu incentivos nos valores de R$ 32,2
milhões com a perspectiva de geração de 1 (um) emprego.
O potencial de geração de empregos é bastante inferior na comparação, por
exemplo, com a Arrozeira Bom Jesus, que também aderiu ao Fundopem neste ano. A
empresa recebeu incentivos na ordem de R$ 3,7 milhões, com a perspectiva de
gerar 45 empregos.
É importante frisar que não há nenhum indício de irregularidades na
concessão de benefícios fiscais nos casos citados. Contudo, a discussão que os
servidores fazem é sobre o retorno das isenções fiscais, que seria diminuto em
termos de geração de empregos na comparação com os investimentos em serviço
público e nos servidores, que retornaram diretamente para a população, segundo
argumentam.
Além disso, destacam que há, sim, questões problemáticas relacionadas a
algumas das empresas que recebem os benefícios fiscais, como é o caso das
vinícolas da Serra Gaúcha que têm relações com empregadores acusados de manter
207 trabalhadores em condições análogas à escravidão.
As vinícolas Aurora, Salton e Garibaldi tiveram a adesão ao Fundopem
renovadas nos últimos anos, tendo a Aurora o benefício aprovado após a operação
de resgate. A empresa tem a previsão de receber benefícios na ordem de
1.192.356,13 UIF/RS ao longo de 96 meses. A Garibaldi tem a previsão de receber
benefícios de 413.619,59 UIF/RS e a Salton de 523.625,17 UIF/RS, ambas também
pelo prazo de 96 meses.
UIF é Unidade de Incentivo do Fundopem, medida que serve como indexador
para quaisquer valores adotados para fins de incentivo do programa. O valor é
atualizado mensalmente pela Receita Estadual e, em setembro deste ano, tinha o
valor calculado de R$ 33,60. Convertendo os valores fornecidos nos pareceres de
enquadramentos, os benefícios fiscais concedidos às vinícolas (em valores da
UIF de setembro de 2023) seriam equivalentes a R$ 40.063.165,96, no caso da
Aurora, R$ 13.897.618,22 para a Garibaldi e R$ 17.593.805,71 para a Salton. É importante
salientar que o valor da UIF é calculado mês a mês, podendo inclusive ser
reduzido, mas tende a aumentar anualmente.
Os pareceres de enquadramento da adesão destas empresas ao Fundopem —
documentos publicados no Diário Oficial — informam que os benefícios se
estendem até 2030, no caso da Aurora, e 2031, nos casos da Garibaldi e da
Salton.
O parecer referente à Aurora informa a previsão de geração de 10 postos
de empregos diretos, enquanto os documentos relativos à Salton e à Garibaldi
não trazem essa informação.
A economista do Dieese argumenta que falta transparência sobre a
concessão de benefícios e critica a ausência de iniciativas nas leis
orçamentárias para a redução futura das renúncias.
“Não há evidências de esforços de efeito pedagógico junto aos
empresários beneficiados para que busquem alternativas na ausência desses
benefícios fiscais. Tudo isso deveria estar sendo abordado há muito tempo,
reconhecendo que essa revisão não é uma tarefa simples. Além disso, o Regime de
Recuperação Fiscal adotado pelo governo atual, que impede aumentos salariais,
prevê a redução das renúncias em pelo menos 20%, mas não está sendo aplicado,
já que essas renúncias continuam a crescer acima da inflação”, diz Anelise
Manganelli.
Retorno menor do que os serviços públicos
Além de questionarem o retorno dos incentivos fiscais, os servidores
apontam que a escolha por aumentar desonerações (acima da inflação) em
detrimento de salários contribui para o sucateamento do serviço público,
trazendo prejuízo à população.
A partir do Painel de Pessoal da Sefaz-RS, o Dieese aponta que, em 2015,
o Rio Grande do Sul tinha 165.511 matrículas ativas de servidores em todos os
poderes. Em 2023, são 140.631, um saldo negativo de 24.880 (-15%). Contudo, a
redução entre servidores do Executivo é maior do que este saldo negativo.
Em 2015, eram 153.040 servidores do Executivo, contra 125.114 em 2023,
redução de 27.926 (-18%). Mais de 91% da redução de vínculos ativos do
Executivo ocorreu apenas na Educação, uma vez que são 25.551 vínculos a menos
na área. Desse total, 15.878 se tornaram inativos, mas 9.673 deixaram o Estado
por outras razões
Somente na Educação, a perda de efetivo foi
de 26%, de 97.986 para 72.435 servidores. A perda de efetivo foi,
proporcionalmente, ainda maior na Saúde. De 4.547 servidores ativos em 2015, a
área passou a 3.172 em 2023, queda de 30%. Assim como na Educação, a redução
não é explicada apenas por aposentadorias. Pelo contrário, dos 1.375 servidores
que deixaram a Saúde estadual nestes 8 anos, 536 se aposentaram.
Alex Saratt
avalia que a redução do número de servidores, para além do congelamento
salarial na maior parte do período, é explicada pelas reformas administrativa e
da Previdência e pelo Plano de Carreira em que os servidores da ativa e
aposentados que possuíam benefícios, como triênios, acabaram “pagando o próprio
reajuste” por meio da parcela de irredutibilidade. Além disso, destaca que os
funcionários de escola não tiveram alteração no plano de carreira e possuem
vencimentos básicos abaixo do salário mínimo. “Para a educação se criou uma
espécie de bolsa ou de reserva feita com as vantagens de carreiras que os
professores tinham. Cada vez que ele dá aumento no salário básico, tira
dinheiro dessa própria reserva. Isso impactou muito fortemente”, diz.
O vice-presidente
do Cpers destaca que mesmo nas atualizações do Piso do Magistério — em 2021,
foi de 32% –, os próprios servidores “pagaram” o reajuste. Isto é, não
receberam na prática. Esta mesma estratégia foi utilizada pelo governo para não pagar o adicional de insalubridade concedido a
funcionários de escolas.
Saratt pontua
ainda que, ao contrário do senso comum e dos argumentos feitos por defensores
do ajuste fiscal, pesquisas internacionais apontam que o Brasil tem um número de servidores públicos abaixo da média de
países desenvolvidos. “O Instituto de Pesquisas Econômicas
Aplicadas, o IPEA, também trouxe, uma discussão importante. A cada um real
investido a partir do serviço público, da empresa pública e da estatal revertia
em pelo menos R$ 1,7. Então, o serviço público se financia e ele pode inclusive
ter margens de lucro, não que seja essa a finalidade. Uma empresa como a CEEE
levava energia onde precisava, e não somente aonde era rentável”.
Antonio Augusto
pontua que um dos resultados do arrocho salarial imposto aos servidores é que
concursos públicos para áreas como as secretarias da Saúde e da Agricultura não
conseguiram completar o número de vagas oferecidas. “Ele arrocha os servidores
públicos, dá essas isenções fiscais sem controle. Claro que dentro das isenções
fiscais tem vários níveis, desde a micro e pequena empresa até as grandes
empresas. Mas a lógica do governo Leite é dar para os empresários e tirar da
população, utilizando aí um arrocho nos servidores públicos e nos serviços
públicos, que a população mais vulnerável necessita”, afirma.
A respeito dos
diálogos em andamento com o governo do Estado, o presidente do Sintergs pontua
que há uma mesa de diálogo com a Secretaria de Planejamento, Governança e
Gestão (SPGG) para mudanças nas carreiras e por reajuste salarial. As
categorias representadas pelo Sintergs estão entre aquelas que só receberam 6%
de reajuste desde 2015. “Mas não temos nada de avanço concreto. Até cobrei do
governador na Expointer e ele diz que entende, que é legítimo, mas que não tem
como encaminhar porque tem o limite prudencial”.
Procurada pela
reportagem, a Sefaz afirmou que reconhece o pleito dos servidores do Executivo
“por uma reposição que possa compensar os anos sem reajuste devido às
dificuldades fiscais que aos poucos começam a ser superadas” e pontua que, em
2022, foi concedido reajuste linear de 6% para a todas as categorias do
funcionalismo, o primeiro desde 2006.
Por outro lado,
pontua que, em 2023, com a queda de arrecadação de ICMS, o Executivo voltou a
atingir o limite prudencial para gastos com pessoal. “No primeiro quadrimestre,
o Poder Executivo seguiu no limite prudencial para gastos com pessoal, apurando
48,81% da Receita Corrente Líquida (RCL), muito próximo do limite máximo de
49%, ficando, novamente, impedido de ampliar ainda mais a folha, que segue
crescente”, diz a Sefaz.
A respeito de
quanto custaria aos cofres do Estado manter os salários dos servidores a par
com a inflação desde 2015, a Sefaz diz que é difícil fazer este cálculo, uma
vez que foram concedidos reajustes para diversas categorias. “É difícil
calcular, hoje, o impacto exato desses reajustes. Mas é importante destacar
que, nesse período, houve reajustes para Segurança Pública e os do Piso do
Magistério, impactando grandes contingentes do serviço público, bem como
inativos e pensionistas”, afirma a Sefaz.
A nota da
secretaria pontua ainda que a constatação do “limitado impacto distributivo das
desonerações fiscais em favor dos mais pobres influenciou na implementação do
programa Devolve ICMS”. “Essa é uma discussão que precisa ser feita de forma
técnica, preservando a economia do Estado, e que nesse momento está concentrada
na Federação, no âmbito das mudanças tributárias nacionais que visam
aperfeiçoar diversas distorções”, finaliza a nota.