Ex-chefes do Exército e da Aeronáutica
confirmaram que o ex-presidente teria participado diretamente de plano para
subverter resultado da eleição de 2022
A derrubada do sigilo dos depoimentos prestados à Polícia
Federal (PF) no âmbito de inquérito sobre suposta tentativa de golpe de Estado
no país em 2022 apertou o cerco contra o ex-presidente Jair
Bolsonaro e alguns de seus principais aliados. A decisão
foi tomada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo
Tribunal Federal (STF), alegando "inúmeras publicações jornalísticas com
informações incompletas sobre os depoimentos".
Dentre os
depoimentos que foram tornados públicos, estão os dos ex-comandantes
do Exército, Marco Antônio Freire Gomes, e da Aeronáutica, Carlos de Almeida
Baptista Junior, que, conforme as investigações, negaram-se
a aderir à trama para subverter o resultado da eleição presidencial em
que Bolsonaro foi derrotado.
Os depoimentos reforçam a
delação do ex-ajudante de ordens Mauro Cid, que colocou Bolsonaro no centro da trama. Os depoimentos
dão detalhes dos encontros
convocados por Bolsonaro — que já haviam sido mencionados por Cid — e
ainda implicam diretamente integrantes
da cúpula do governo do ex-presidente: o ex-ministro da Defesa Paulo
Sérgio Nogueira de Oliveira, que teria apresentado uma das versões da
"minuta do golpe" aos então comandantes das Forças Armadas, e o
ex-ministro da Justiça Anderson Torres, que teria explicado aspectos jurídicos
que poderiam embasar às medidas de exceção.
Dentre as afirmações feitas nos interrogatórios, estão a de que Bolsonaro
teria participado diretamente da elaboração de minutas que dariam respaldo
jurídico ao movimento e a de que Freire
Gomes teria ameaçado prender o ex-presidente caso ele levasse adiante a o plano
golpista. Além disso, o presidente nacional do PL, sigla de
Bolsonaro, Valdemar Costa Neto, alegou ter sofrido pressão para
questionar o resultado do pleito. Outros
aliados de Bolsonaro também tiveram os depoimentos divulgados.
Bolsonaro, que em mais de uma oportunidade
negou ter conhecimento sobre as minutas, não se manifestou
após a divulgação dos depoimentos. A investigação também apontou que o ex-comandante
da Marinha, Almir Garnier, teria concordado em dar apoio ao golpe.
Ele, no entanto, ficou em silêncio ao comparecer à PF.
Anulação da eleição foi discutida em reuniões, diz Freire Gomes
Em depoimento no dia 1º de março, o general
Marco Antônio Freire Gomes afirmou que Bolsonaro convocou reuniões no Palácio
do Alvorada após o segundo turno e "apresentou hipóteses de utilização de
institutos jurídicos como Garantia da Lei e da Ordem (GLO), estado de defesa e
sítio em relação ao processo eleitoral".
A minuta
golpista apreendida pela PF teria sido apresentada em um encontro na residência
oficial no dia 7 de dezembro de 2022, segundo o ex-comandante do Exército.
Freire Gomes contou que o convite para comparecer ao Palácio do Alvorada foi
enviado por meio do então ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, mas que o
tema da reunião não foi informado previamente.
Freire
Gomes alegou
à PF que "sempre deixou evidenciado ao então presidente que o Exército
não participaria da implementação desses institutos visando reverter o processo
eleitoral" e que Bolsonaro "não teria suporte jurídico"
para anular o resultado da eleição. O chefe da Marinha, almirante Almir
Garnier, teria se colocado à disposição do ex-presidente, de acordo com o general.
Mensagens
apreendidas pela PF mostram que o general Walter Braga Netto,
ex-ministro da Casa Civil, liderou uma campanha velada, mas agressiva, de
pressão a oficiais das Forças Armadas que rejeitaram aderir ao plano golpista.
Em um dos diálogos, em dezembro de 2022, Braga Netto afirma que a "culpa
pelo que está acontecendo e acontecerá é do general Freire Gomes".
"Omissão e indecisão não cabem a um combatente", acrescenta o
ministro. "Oferece a cabeça dele. Cagão."
Baptista
Júnior afirma que general ameaçou prender ex-presidente
Ex-comandante
da Aeronáutica, o brigadeiro Carlos Almeida Baptista Júnior relatou a tensão
que marcou a reunião, em dezembro de 2022, na qual o ex-presidente Jair
Bolsonaro sondou a cúpula das Forças Armadas sobre um golpe de Estado.
Narrou que sequer aceitou receber a minuta de golpe discutida pelo ex-chefe do
Executivo, levantando-se da mesa e deixando a sala. Antes, ainda de acordo com
o brigadeiro, Freire Gomes chegou a afirmar que teria que prender
Bolsonaro caso o ex-presidente tentasse o golpe.
Baptista
Júnior negou ter participado de reuniões com o ex-ajudante de ordens da
Presidência tenente-coronel Mauro Cid (hoje delator), o general Braga Netto e
outros oficiais para tratar sobre o suposto golpe de Estado.
O ex-chefe
da FAB narrou que após a derrota de Bolsonaro nas urnas houve uma
reunião entre o ex-presidente, a cúpula das Forças Armadas e o então
advogado-geral da União Bruno Bianco. Na ocasião, o ex-chefe do Executivo foi
informado que não haveria "nenhuma alternativa jurídica para contestar o
resultado das eleições".
Depois,
entre os dia 1º e 19 de novembro de 2022, o brigadeiro foi cinco vezes ao
Palácio da Alvorada, por ordem do então presidente. Segundo o militar,
inicialmente Bolsonaro estava resignado com o resultado das eleições, mas
depois aparentou ter esperança de reverter a derrota nas urnas com as alegações
de fraudes.
O brigadeiro
foi questionado se acreditava que houve fraudes nas eleições. Batendo de
frente com a narrativa de Bolsonaro, assentou que "conforme os resultados
obtidos pela Comissão de Fiscalização do Ministério da Defesa tem certeza que
não existiu qualquer fraude relacionado ao sistema eletrônico de votação".
Baptista
Júnior ressaltou inclusive que "constantemente" informou a Bolsonaro
que não existia qualquer fraude nas urnas. Relatou inclusive que recebeu
do ex-presidente um estudo impresso do Instituto Voto Legal sobre supostas
fraudes, e, em resposta, destacou como o documento estava "mal redigido e
com vários erros técnicos e se tratava de um sofisma".
Costa Neto
relatou pressão para questionar o resultado das urnas
O
presidente nacional do PL, Valdemar Costa Neto, disse que foi pressionado por
Bolsonaro e deputados do partido a entrar com ação no Tribunal Superior
Eleitoral (TSE) para questionar o resultado do segundo turno das eleições de
2022. "Nunca foi apresentado nada consistente",
reconheceu o político. Valdemar foi ouvido no dia 22 de fevereiro.
Após a
derrota de Bolsonaro, o PL pediu a anulação dos votos de 279,3 mil urnas
eletrônicas alegando que houve "mau funcionamento" do sistema. O partido foi multado pelo TSE em R$ 22,9 milhões
por "má-fé".
Segundo
Valdemar, a pressão para dar entrada no processo teve início após o
vazamento do relatório produzido pelo Instituto Voto Legal, contratado pelo
partido para "fiscalizar o andamento das eleições". O documento
apontou supostos problemas nos modelos de urna lançados antes de 2020, que têm
um número de série único.
"Indagado
se o então presidente Jair Bolsonaro insistiu com o declarante para ajuizar
ação no TSE questionando o resultado das urnas eletrônicas, respondeu que
quando houve o vazamento do relatório do IVL, os deputados do Partido Liberal e
então presidente Bolsonaro o pressionaram para ajuizar tal ação no TSE",
diz um trecho do termo de depoimento.
O Instituto
Voto Legal foi indicado ao PL pelo senador Marcos Pontes (PL-SP), na época
ministro da Ciência, e recebeu R$ 1 milhão do partido.
Valdemar
também isentou o Republicanos e o Progressistas, que
faziam parte da coligação com o PL nas eleições. Ele afirmou que os
partidos não chegaram a ser consultados sobre a ação no TSE e não deram
autorização para a iniciativa.
Os
investigadores também questionaram o motivo das visitas feitas por Valdemar a
Bolsonaro na reta final do governo. A PF acredita que reuniões tenham sido
convocadas pelo então presidente para articular um plano golpista com oficiais
das Forças Armadas. O presidente do PL esteve pelo menos sete vezes no Palácio
do Alvorada após a derrota no segundo turno, conforme registros de acesso à
residência oficial.
Valdemar
afirmou que foi checar o "estado de espírito" de Bolsonaro e que as
visitas "eram sempre para tentar animar o presidente, que estava muito
abatido". "Não havia fluxo de pessoas, o presidente quase não conversava
com ninguém e o clima era de luto", narrou. Ele negou ter tomado
conhecimento ou participado de reuniões golpistas.
Heleno
teria ficado "atônito" com falta de adesão
O ex-comandante da Aeronáutica também relatou, no depoimento, um
encontro com o general Augusto Heleno, ex-ministro-chefe do Gabinete de
Segurança Institucional (GSI), em São José dos Campos (SP)
durante formatura no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). De acordo com
Baptista Júnior, Heleno ficou
"atônito" e "desconversou" ao receber uma negativa de
tentativa de golpe do principal nome da Força Aérea
Brasileira (FAB).
O encontro
ocorreu, segundo documento da PF, no dia 16 de dezembro de 2022, após a
eleição. A conversa entre Heleno e Baptista Júnior começou quando o ex-chefe do
GSI perguntou se o ex-comandante poderia reservar um assento para ele em voo da
FAB para retornar às pressas a Brasília por determinação de Bolsonaro. Heleno
estava na formatura de seu neto e tentou convencer Bolsonaro a desistir da
convocação pessoal, o que foi negado pelo ex-presidente, segundo o documento.
No depoimento, Baptista
Júnior disse que foi nesse momento que levou Heleno para uma sala reservada e
afirmou "categoricamente" que a FAB não "anuiria com qualquer
movimento de ruptura democrática". Ele disse ainda ter
pedido a Heleno para levar o recado para Bolsonaro.
Ex-assessor nega que tenha saído do país
O ex-assessor de Assuntos Internacionais de
Bolsonaro Filipe Martins, negou, em depoimento prestado em
fevereiro, ter saído do país um mês antes dos atos golpistas de 8 de Janeiro.
De acordo com as investigações da PF, Martins é apontado como um dos responsáveis
pela elaboração da minuta de golpe. Ele está
preso desde 8 de fevereiro em função das investigações.
No depoimento,
apesar de não responder parte das perguntas sob a alegação de não ter acesso ao
inquérito, o ex-assessor negou que tenha sido responsável pela
elaboração da minuta e disse que estava no Brasil no final
de 2022.
Ele afirmou
que fez uma viagem de Brasília para Curitiba no dia 31 de dezembro de 2022. A
PF suspeitava de que Martins tenha saído do país no avião presidencial com
Bolsonaro com destino a Orlando, nos Estados Unidos, nos últimos dias de
mandato do ex-presidente.
A suspeita é
também apurada pelo ministro Alexandre de Moraes, relator das investigações.
Moraes pediu à administração do Aeroporto de Brasília imagens do embarque de
Filipe Martins e informações sobre o voo à companhia Latam.
Em ofício enviado
ao ministro, a defesa de Martins enviou uma cópia do comprovante de embarque no
dia indicado no depoimento.
Torres participou de conversas, dizem ex-comandantes
Embora o ex-ministro da Justiça Anderson Torres tenha negado, em
depoimento, participação em conversas sobre um possível golpe de Estado, o
relato dos dos ex-chefes da Aeronáutica e do Exército põem em xeque essa
versão.
Os militares
apontam a presença de Torres, em cuja casa foi encontrada
uma minuta golpista, em ao menos uma reunião com Bolsonaro e a
cúpula das Forças Armadas para discussão do plano. Baptista narrou
que, no encontro, o ex-ministro da Justiça 'procurou pontuar aspectos jurídicos
que dariam suporte às medidas de exceção' que eram estudadas por Bolsonaro para
que ele se mantivesse no poder.
Na mesma
linha, Freire Gomes ressaltou que participou de algumas reuniões em
que foi discutido o suposto golpe, com a presença do ex-ministro da Justiça,
que "explanava o suporte jurídico para as medidas que poderiam ser
adotadas". Freire Gomes narrou também que, no dia 14 de
dezembro de 2022, recebeu, das mãos do ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio
Oliveira, uma cópia da minuta que foi apreendida na casa de Torres.
Após as
revelações dos militares, a defesa de Torres reforçou a declaração de que o
ex-ministro não participou de reuniões para tratar de "medidas
antidemocráticas". "O ex-ministro, citado de modo genérico e vago por
duas testemunhas, esclarece que houve grave equívoco nos depoimentos
prestados", indicou o advogado Edmar Novaki, que defende Torres. Ele
ressaltou que pretende requerer uma nova oitiva de Torres
e eventual acareação com os ex-chefes das Forças Armadas.
Zambelli teria pedido apóio ao ex-chefe da Aeronáutica
O
ex-comandante da Aeronáutica também afirmou no depoimento que foi
abordado pela deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) durante evento
da Força Aérea Brasileira (FAB), em Pirassununga, no interior de São Paulo,
com exigência para não "deixar o presidente Bolsonaro na mão".
O caso ocorreu, segundo ele, no dia 8 de dezembro de 2022 — ou seja, após a
eleição em que Bolsonaro foi derrotado.
Baptista
Júnior afirmou ter respondido que não admitia que a parlamentar propusesse
"qualquer ilegalidade". Depois, ele disse ter comunicado ao então
ministro da Defesa Paulo Sergio de Oliveira o ocorrido. Oliveira então teria
dito que a parlamentar o abordou de "forma semelhante".
Procurada,
a defesa de Zambelli afirmou que nunca fez pedido ilegal, não se
recorda do fato e "se, porventura, pediu acolhimento, o fez por causa da
derrota nas eleições".
As versões
das minutas
A
investigação da Polícia Federal mapeou pelo menos três versões da
minuta golpista discutidas por Bolsonaro junto a assessores, o
ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, e os comandantes das
Forças Armadas. Os textos teriam sido produzidos e editados pelo ex-ministro
da Justiça Anderson Torres e pelo ex-assessor da Presidência Filipe Martins.
Entenda cada versão.
Primeira
versão — Prisão de Moraes, Gilmar Mendes e Pacheco
Foi
apresentada a Bolsonaro no dia 19 de novembro de 2022, em reunião no Palácio da
Alvorada. Naquela data, o então presidente recebeu o assessor Filipe Martins, o
advogado Amauri Saad e o padre José Eduardo de Oliveira e Silva. O texto pedia
a prisão dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes e
Gilmar Mendes e do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Segundo
Mauro Cid, Bolsonaro teria determinado a Filipe Martins alguns ajustes no
documento. O documento ainda não veio a público.
Segunda
versão — Estado de sítio e GLO
Foi
apresentado durante reunião no dia 7 de dezembro de 2022, na biblioteca do
Palácio do Planalto, com a presença dos comandantes do Exército e da Marinha,
do ministro da Defesa, do assessor Filipe Martins e de Bolsonaro. Texto declarava
estado de sítio e Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Baptista Júnior disse que,
ao final, se decretava a realização de novas eleições e a prisão de diversas
autoridades do judiciário. Bolsonaro disse que o documento estava em estudo e
que reportaria para eles a evolução. O documento estava em posse de Mauro Cid.
Terceira
versão — Estado de defesa
Possivelmente
apresentada na manhã do dia 14 de dezembro de 2022, na sede do Ministério da
Defesa, e em uma outra reunião no Palácio do Planalto, convocada pelo ministro
Paulo Sérgio de Oliveira e com a presença dos três comandantes das Forças
Armadas. Previa estado de defesa "com vistas a restabelecer a ordem e a
paz institucional". Baptista Júnior e Freire Gomes disseram à PF que não
admitiram a hipótese de golpe de Estado, enquanto Garnier Santos ficou calado.
Documento foi apreendido na casa do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública
Anderson Torres.