Em entrevista, governador analisa a alteração na
carreira e na aposentadoria do funcionalismo e o fato de não ter cumprido
promessa de campanha de colocar em dia o salário dos servidores
Eduardo Leite tinha pouco cabelos brancos,
mas, passado um ano de mandato, a quantidade de fios grisalhos já chama atenção.
— Aumentou muito. Puxa,
muito. E as olheiras também — diz o governador de 34 anos.
Em
entrevista de uma hora e 15 minutos em seu gabinete no Palácio Piratini, na
sexta-feira (20), Leite reconheceu o estresse dos últimos 12 meses. Embora
tenha colhido êxito ao longo de 2019 em todos os projetos enviados à
Assembleia, precisou adiar a apreciação de sete
das oito propostas do pacote que altera a carreira e a
aposentadoria do funcionalismo e fracassou na tentativa de colocar os salários
em dia, principal promessa de campanha.
Desgastado com os servidores, Leite também encara
resistência de sua ampla base de deputados por causa das reformas. Herdeiro de
um déficit de R$ 2,74 bilhões, aprofundou o embate com os demais poderes ao
chamá-los para dividir a conta da crise e colheu derrota na tentativa venda de
ações do Banrisul.
Para 2020,
o governador planeja superar o pacote do funcionalismo, injetando receitas
extraordinárias e contendo gastos, enquanto prepara outra proposta amarga. Irá
apresentar nova política fiscal para o Estado, cortando incentivos a empresas e
setor.
Leia a entrevista abaixo:
Ao final
deste primeiro ano de governo, sua sensação é de ter sido mais difícil do que
esperava?
Não foi mais difícil, mas também não foi mais fácil. O
primeiro ano é de semeadura. O duro na vida do agente público é estar plantando
recém saído da exposição da campanha eleitoral, na qual as pessoas depositam
muita confiança e esperança e querem respostas imediatas. Somos cobrados no
primeiro ano de governo por coisas que levam tempo para serem feitas.
O senhor se
arrepende de ter prometido colocar os salários em dia até o fim deste ano?
Não. Lidei com os números e era possível, mas entramos
com condições mais difíceis do que o esperado. Iremos quitar o salário de
dezembro em 14 de janeiro. Em 2019, foi no dia 15. É de se comemorar um dia
antes? Bom, mas também é um dia antes sem atraso a hospitais e municípios. No
início do ano, os hospitais estavam sem receber desde
setembro e os municípios desde junho. Havia um incêndio na área da saúde. Hoje,
os pagamentos estão em dia e as obras incluídas no plano de obras, em
andamento. Se tivéssemos feito a operação das ações do Banrisul,
estaríamos com o salário dos servidores em dia. Mas, recebendo do exercício
anterior R$ 3 bilhões de duas folhas de pagamento, foi impossível colocar o
salário em dia e ajustar o fluxo de caixa sem gerar receita extraordinária.
Buscamos gerar, mas, infelizmente, não foi viabilizado. Essa não foi uma
promessa vazia. Tenho segurança de que iremos viabilizá-la ali na frente, mas
ainda dependemos da geração de receita extraordinária. Sem um aporte extra de
recursos, o Estado não consegue colocar a folha em dia. Com reformas e receita
extra, o Estado colocará em dia os salários e não irá mais atrasá-los, porque
estamos contendo o aumento de despesa e viabilizando nova receita com as
alíquotas previdenciárias.
Essa
receita extra vem da privatização das estatais?
É a receita mais concreta no horizonte, mas é possível
que, antes disso, se viabilize a antecipação de receita das vendas e se retome
conversa para alcançar uma operação de recursos do Judiciário. Há outras formas
de antecipar receita que podem fazer com que não tenhamos de esperar a venda
efetiva das estatais. Não será necessariamente no momento da venda da CEEE,
entre junho e setembro, que iremos viabilizar o pagamento em dia.
Quando os
servidores podem pensar em ter os salários em dia?
É preciso ter cuidado com prazos. Trabalhamos para
viabilizar a entrada de receita extraordinária e esperamos que isso aconteça
entre o fim do primeiro semestre e o início do segundo. Mas vamos trabalhar
forte para antecipar. Se aderirmos ao regime de recuperação fiscal (RRF), há a
possibilidade de adiantamento de recursos. O ministro Paulo Guedes (Economia) fala em linhas
de crédito para antecipar receitas de privatizações. Hoje, como estamos
infringindo o endividamento, não podemos contrair financiamentos. Só poderemos
se aderirmos ao RRF. O Estado precisa superar essa questão do salário em dia,
pelo que significa na vida dos servidores e da economia. Colocar salário em dia
é colocar dinheiro no mercado. A folha representa R$ 1,5 bilhão por mês. Não é
pouca coisa.
Como
o senhor pretende evitar a perda de receita com o fim das alíquotas majoradas
de ICMS?
Sempre disse que precisávamos de dois anos de
prorrogação das alíquotas, tempo necessário para ajustar despesas e propor o
que irá substituir o regime extraordinário de alíquotas. Aí, está incluída a
revisão dos incentivos fiscais. Estamos estudando para apresentar, no próximo
ano, uma nova política tributária que assegure receitas para abrirmos mão das
alíquotas. Poderá haver reposicionamento de cobranças em setores incentivados
sem necessidade para reduzir as alíquotas naquilo que atinge toda a população –
combustível, energia e telecomunicações. Nosso foco é reduzir as alíquotas e,
para isso, temos de mudar a política tributária. A população está superonerada
porque determinados setores estão subonerados sem necessidade. Há também a
redução de despesas, as novas alíquotas da previdência e o fim das vantagens
temporais. Tudo isso, somado ao crescimento econômico, permitirá crescimento de
receita. Aí, podemos abrir mão das alíquotas aumentadas.
A política
tributária prevê então onerar alguns setores e desonerar outros?
É preciso analisar toda a política tributária. As
alíquotas majoradas do ICMS foram a escolha do caminho mais fácil, garantindo o
ingresso de receita sem grande esforço e punindo a população. As pessoas não
têm o que fazer. Todo mundo reclama, mas acaba consumindo. É necessário
promover uma ampla revisão de benefícios e incentivos não só a empresas, mas
também a setores. Se cobrarmos de determinado setor, iremos perder
competitividade? É um setor que o Rio Grande do Sul determina o preço porque
produz mais? Outros Estados tributam mais? Essa análise é complexa. Tenho a
convicção de que vamos abrir mão de receita. Por isso, a reforma do Estado é
importante. As alterações na política tributária não irão dar conta da perda de
receita de R$ 3,5 bilhões. Será a soma dos fatores: corte de despesas,
enxugamento, redução do déficit e reforma da previdência. Também temos a
expectativa de crescimento da economia. A redução das alíquotas de imposto
ajuda a impulsionar a economia.
Após a aprovação das novas alíquotas da previdência de servidores,
deputados da base têm afirmado que as demais propostas do pacote do funcionalismo
não irão passar sem mudanças substanciais na convocação extraordinária,
sobretudo o plano de carreira do magistério. O senhor fará mais concessões?
Ainda não temos absoluta certeza de que será em
convocação extraordinária. É bem provável, mas está em análise. Deixamos os
deputados de sobreaviso para as duas últimas semanas de janeiro, mas isso
poderá ser alterado até o último momento. Sobre os projetos, fomos ao limite no
caso do magistério. Há ganho expressivo para diversos professores em uma
estratégia de melhorar a educação e tornar a carreira mais atraente para quem
quer entrar ou entrou há pouco tempo. Foram estabelecidos valores maiores na
comparação com a tabela vigente, espaçamento maior entre os níveis e reajustes
salariais que chegam a cerca de 20% em três anos. Mas, de fato, os triênios e
as vantagens temporais serão absorvidos pela remuneração. Essa é a única forma de
o governo conseguir promover ganhos salariais que tornem a carreira atraente. É
impagável dar reajustes que repercutem sobre as vantagens temporais. A
sociedade ficou com uma percepção errada desse plano. Como estamos acabando com
as vantagens temporais, entendemos que era o momento para alterar também a
forma de remuneração dos professores para subsídio. Isso gerou a percepção de
que é um plano de ajuste fiscal. Na verdade, é um plano para a educação,
tornando a entrada mais atraente e reabrindo a possibilidade de promoções com o
fim do efeito cascata.
O
governo tem segurança jurídica de
que não irá criar um passivo ao incorporar as parcelas autônomas quando houver
reajustes?
Absoluta. Não há nada de inédito nisso. O mesmo ocorreu
quando a Polícia Civil passou para esse sistema. O subsídio é bom para quem
entra na carreira, mas não é atraente para quem está há mais tempo e para os
aposentados. O subsídio leva todas as vantagens, e o valor que exceder será
pago como parcela autônoma. Aí, a cada reajuste ao subsídio, essas vantagens
serão incorporadas. A diferença é que, no caso da Polícia Civil, o pagamento
por meio de subsídio ocorreu com aumentos salariais expressivos.
Uma das
principais queixas é que a parcela autônoma condena os servidores ao
congelamento salarial “eterno”.
Não é verdade. Serão duas parcelas autônomas. As
gratificações incorporadas compõem parcela autônoma que não será absorvida. As
absorvíveis são as vantagens temporais. O que ficará de fora como parcela
autônoma será o valor que extrapolar o novo subsídio nas vantagens temporais. É
da natureza da parcela autônoma ser absorvida, porque todos os reajustes que
forem dados lá na frente são para melhorar o salário de quem ainda não chegou
ao fim da carreira.
Mas
essa parcela nunca será corrigida.
Será corrigida nas revisões gerais que têm caráter de
reposição inflacionária. Está dito na lei: as parcelas autônomas de
irredutibilidade serão absorvidas, ressalvadas as revisões gerais. Se é para
repor poder de compra com a concessão da inflação, ela não será absorvida.
Agora, se é reajuste para melhorar a tabela de remuneração, aí a parcela
autônoma será absorvida, porque está se melhorando a tabela e o servidor já
está acima dela.
Faz muitos
anos que não há revisão geral.
E da forma como o Estado estabeleceu sua remuneração,
continuará sem haver. Há muito tempo que não se tem revisão geral e não ocorrem
promoções na carreira, há cinco anos se recebe parcelado e as pessoas acham que
não tem de mudar nada? Se não mudar, só irá piorar. Se a estrutura
remuneratória mudar, rompendo com o efeito cascata e estabelecendo o
reequilíbrio fiscal, o Estado terá condições de fazer, no futuro, uma revisão
geral sem que isso represente uma explosão do caixa.
O senhor
colheu aproveitamento de 100% na Assembleia em 2019, mas enfrenta resistência
da base por causa do pacote do funcionalismo. Teve de adiar a apreciação da
maioria das propostas para 2020. Houve equívoco na condução do pacote?
Não, de forma alguma. O ano foi bastante produtivo,
tivemos número de votos suficientes em todas as votações para aprovar uma PEC
(proposta de emenda constitucional). A articulação política do governo foi
acertada. Democracia é isso. Não é o tempo do governador, mas o tempo do
convencimento dos deputados. Tenho profundo conhecimento técnico sobre as
razões das medidas. A reforma da Previdência federal foi aprovada mais tarde do
que se esperava, e só podíamos mandar a nossa depois. Isso gerou dificuldade no
prazo das votações. Tentei compensar com a antecipação do debate, começando
antes de protocolar no parlamento. Apresentei a deputados, sindicatos, imprensa
e sociedade. Tínhamos a expectativa de que esse debate antecipado ao processo
legislativo formaria convicção suficiente nos deputados. Mas não foi o
suficiente, talvez porque outras pautas estivessem demandando atenção. Quando
finalmente estiveram com sua atenção focada no pacote, já estavam próximos da
votação e demandaram que se votasse apenas um projeto. Não foram poucos
deputados defendendo que se votassem todos, mas é importante ter o máximo de
unidade para não haver dificuldades dentro da própria base. Se um grupo de
deputados expressivo entende que precisa de mais tempo, mesmo que o restante dê
condições de voto, não nos interessa rachar a base. Então, vamos esperar mais um pouco. O que não
podemos é não enfrentar o tema.
Há muita
reclamação de bastidores de que o senhor está cercado somente por técnicos e,
quando as propostas chegam aos deputados, estão prontas. O senhor pretende
mudar a forma como dialoga com a base?
O que fizemos no pacote foi inédito. Chamei todos os deputados
para apresentar as mudanças ponto a ponto e entregamos uma cartilha antes de
protocolar o pacote. Abrimos para sugestões e críticas, fizemos alterações e
mantivemos a disposição de conversar com as bancadas. Aceito críticas que me
ajudem a melhorar, mas, pela forma como conduzimos o processo, acho que essa
não se justifica. Se entenderem que devemos conversar mais, não tem problema.
Política é a arte de conversar, construir, entender os pontos, contrapor ou
assimilar. Em muitos casos assimilei. Em outros, contra argumentei e não pude
atender às demandas. Irei continuar com essa postura. Querem conversar mais?
Irei conversar tantas vezes forem necessárias, mas tem de chegar a hora de
decisão. O Estado não pode protelar essa responsabilidade. Somos o Estado com a
pior situação fiscal e o pior déficit previdenciário do país. Não é possível
assistir a isso sem fazer nada enquanto alguns vendem a ilusão de que os
recursos da Lei Kandir ou o combate à sonegação irão resolver. Aliás, na semana
que passou, vivi o que é ser de centro no Brasil. No dia em que era atacado por
sindicalistas (de esquerda) por conta das reformas, fui atacado pelo MBL
(Movimento Brasil Livre, de direita) por ter atuado junto ao Supremo Tribunal
Federal para que o devedor contumaz de ICMS tenha sua conduta tipificada como
crime de apropriação indébita. Faço uma reforma do Estado,
e o sindicalista diz que tenho de combater a sonegação. Digo para transformar a
sonegação em conduta criminosa, e o MBL diz que tem de diminuir o custo da
máquina. Essas alternativas não são excludentes, temos de fazer as duas. Apanho
dos dois lados, ser de centro é isso.
Também há
críticas de que o senhor tenta resolver a crise mexendo apenas com os pequenos,
como os aposentados. Quais medidas pretende adotar para atingir o topo da
pirâmide?
As alíquotas da previdência chegaram em um ponto
bastante justo. Os servidores que ganham mais irão contribuir mais, os que
ganham menos irão pagar menos e os aposentados irão ajudar a sustentar esse
sistema. Muitos aposentados nunca contribuíram com a previdência. Entendo ser justo
chamar a todos para pagar, até porque o Estado tem mais aposentados do que
servidores em atividade. Não há como pensar em um sistema de repartição como o
nosso, no qual há mais inativos do que ativos, sem que os próprios aposentados
contribuam para sua própria aposentadoria.