GZH ouviu os secretários de segurança dos três
últimos governos, incluindo o atual, para avaliar a evolução da criminalidade
no Estado entre janeiro de 2011 e dezembro de 2020
O Rio Grande do
Sul encerrou 2020 com números históricos no combate à criminalidade.
A taxa de homicídios chegou a 14,8 para cada 100 mil habitantes e, pela
primeira vez desde 2010, ficou abaixo de 15, segundo dados da Secretaria da
Segurança Pública (SSP). Cenário bastante diverso do enfrentado entre 2016 e
2017, quando os gaúchos foram aterrorizados por onda de assassinatos e assaltos
com morte. Naquele período, a mesma taxa de homicídios chegou a
26,4 e um latrocínio era registrado a cada dois dias no Estado.
Para analisar como o
crime oscilou em uma década (entre janeiro de 2011 e dezembro do ano passado),
GZH ouviu chefes da segurança dos três últimos governos. O procurador do
Ministério Público Airton Michels, que ocupou o cargo por
quatro anos, entre 2011 e 2014, na gestão de Tarso Genro (PT), o vereador de
Porto Alegre Cezar Schirmer (MDB), que assumiu a
pasta em 2016 no governo de José Ivo Sartori (MDB), e o vice-governador Ranolfo Vieira Júnior (PTB), que
acumula as funções no governo de Eduardo Leite (PSDB). A reportagem não
conseguiu contato com o ex-secretário Wantuir Jacini.
Os três retomaram as
políticas adotadas por seus governos — por
vezes contrastantes entre as gestões — , avaliaram o cenário atual e
discorreram sobre os desafios a serem enfrentados na segurança pública do
Estado, como o combate ao crime organizado e o sistema prisional.
O
início do trajeto
Quando assumiu o cargo de
secretário da segurança do Estado em janeiro de 2011, Airton
Michels foi chamado "xerife das cadeias". A
alcunha fazia eco à larga experiência na gestão prisional do então diretor do
Departamento Penitenciário Nacional (Depen), que já havia sido chefe da Superintendência
dos Serviços Penitenciários (Susepe) do RS. Solucionar dilemas num abarrotado
sistema carcerário era meta do governo. O objetivo tinha alvo: o Presídio
Central, em Porto Alegre, que amargava o título de
"pior presídio do Brasil".
Construído na década de
1950, com deficiências estruturais graves, com esgoto a céu aberto, o prédio
chegou a espremer cerca de 5 mil presos. As celas perderam o sentido, os detentos
passaram a ocupar os corredores, e a separação dentro da cadeia passou a ser
feita com base na distribuição das facções.
"Era um criatório do
crime, não uma solução. Nos quatro anos, focamos em gerar vagas prisionais no
Estado. Mas não é solução para (apenas)
um governo" — reconhece Michels.
Às 10h de 14 de outubro de
2014, o secretário deu a marretada simbólica na parede do pavilhão C da cadeia.
A expectativa era de que a demolição tirasse a casa prisional do mapa
carcerário gaúcho. Mas a obra parou, os presos voltaram a inflar, e a prisão só
mudou de nome. Hoje chamada Cadeia Pública de Porto Alegre, acumula 3,4 mil
presos, num espaço para 1,8 mil.
"Não derrubei todo o
Central porque perdemos a eleição" — diz o ex-secretário.
Mas o sistema carcerário não
era o único problema enfrentado naquele momento. Quando assumiu a gestão em
2011, o cenário dos homicídios no Estado era semelhante ao atual - 1.668 haviam
sido registrados em 2010. Mas o Estado viu os indicadores de crimes, como
assassinatos e roubos, subirem. Em dezembro de 2012, foram criados o
Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa e seis delegacias especializadas
na Capital para investigarem assassinatos, e o governo investiu no policiamento
comunitário nas periferias, em parcerias com municípios. Houve também melhoria
na remuneração dos servidores, que protestavam pelos baixos salários. Ainda
assim, o crime ascendeu, e 2014 encerrou com 675 homicídios a mais do que em
2011.
"Estava ocorrendo em todo o
Brasil. Havia um fenômeno, uma exacerbação que já se formava em 2014, de
reforço grande das facções, que começaram a se matar" — avalia Michels.
No RS as facções também se
proliferavam e as disputas por territórios se tornavam mais sangrentas,
especialmente na Região Metropolitana. Dali em diante, a escalada da violência
se intensificou. Em 2015, o RS registrava em média 49 roubos
de veículo por dia — metade desses na Capital. Foi
este cenário que o delegado federal aposentado Wantuir Jacini encontrou
quando assumiu a pasta da segurança em janeiro de 2015.
Descontrole
Considerado um perfil
técnico, por conta da experiência profissional e dos oito anos como secretário
de segurança do Mato Grosso do Sul, Jacini traçou como meta impedir o ingresso
de celulares nas cadeias para evitar o comando de crimes por trás das grades,
mas não obteve êxito. Em dezembro de 2015, seis coletivos foram incendiados na
zona sul da Capital, em represália a uma ação policial. O episódio levou a
novas pressões para que o governo solicitasse apoio da Força Nacional. O ano de
2016 seguiu com aumento dos principais crimes, especialmente na Região
Metropolitana.
Horas depois, o
secretário pediu exoneração e, no dia seguinte, o
governador Sartori viajou a Brasília para solicitar apoio da Força
Nacional, o que se concretizou em 28 de agosto, com a
chegada de 120 policiais. Com a saída de Jacini, o governo precisou buscar
outro nome para a segurança. O anúncio se deu em 2 de setembro, sob críticas.
Prefeito de Santa Maria em dois mandatos, Cezar Schirmer não tinha experiência
na área policial e teve a carreira marcada pelo incêndio da Boate Kiss, em
janeiro de 2013. A primeira medida do novo secretário foi pedir trégua de 90
dias aos gaúchos antes de cobrarem resultados.
"O maior desafio era
assumir em circunstâncias extremamente adversas e com baixa aceitação da
população, da imprensa. Mas sou movido por desafios. Tinha convicção de que era
possível transformar rapidamente aqueles indicadores" — recorda Schirmer.
Reação
O Estado buscou apoio
federal e parcerias para comprar equipamentos, como armas e coletes, além de
viaturas. A chegada da Força
Nacional, bem equipada, também teve impacto positivo na
opinião pública - a ideia inicial era empregá-los na guarda dos presídios, mas
foram mantidos no policiamento. Aliado a isso, o governo passou a investir os
recursos próprios na tentativa de suprir a carência de policiais.
Outra frente, com
apoio de vários órgãos, deu-se no enfrentamento às facções criminosas, que
protagonizavam crimes violentos e execuções brutais. Naquele momento, já havia
também um maior movimento de interiorização das facções, que ganharam força no
Interior - algo que seguiu acontecendo nos anos seguintes. Como resposta, em julho
de 2017 foram transferidos 27 líderes de organizações criminosas na Operação Pulso Firme. Era a primeira vez
que o Estado fazia envio em massa de detentos para penitenciárias federais.
"Foi um marco
no enfrentamento do crime e um sinal para as facções de que o medo tinha que
mudar de lado. Quem tem que ter medo é o crime. Quando o poder público recua, o
crime ocupa espaço. Quando o poder público avança, o crime recua" — avalia
Schirmer.
Ainda em 2017, foi criado
programa para estreitar a cooperação entre Estado e município na segurança e
incentivar a implantação de videomonitoramento e cercamento eletrônico, como
estratégia para evitar crimes, especialmente assaltos e roubos de veículos. Naquele
ano, indicadores como roubos e latrocínios começaram a apresentar queda, mas o
recuo acentuado, envolvendo homicídios e roubos de veículos, aconteceu em 2018.
A taxa de assassinatos caiu de 26,4 por 100 mil habitantes para 20,9.
Período
atual
Às 7h, todas as manhãs,
Ranolfo recebe um boletim com os crimes violentos registrados no Estado nas
últimas 24 horas. Vice-governador, acumula a pasta da Segurança Pública desde o
início do governo, em janeiro de 2019. Delegado de polícia desde 1998, foi
diretor do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) e chefe da
Polícia Civil por quatro anos (2011 a 2014).
Monitorar onde o crime vem
concentrando as ações para costurar uma resposta é uma das estratégias adotadas
pela atual gestão. Ranolfo afirma que a aposta tem sido em três “i”:
inteligência, integração e investimentos. Para isso, em fevereiro de 2019, o
governo lançou o RS Seguro, um programa dividido em quatro eixos, para conter a
violência no Estado.
Uma das premissas do
programa, para combater o crime, é o foco na territorialidade. Foram
selecionados 18 municípios mais violentos para aplicar estratégias como
mapeamento da criminalidade e maior integração entre polícias – em 2020, esse
número foi ampliado para 23 cidades. Também receberam reforço de efetivo, e
reuniões mensais de Gestão Estatística em Segurança (Geseg) são realizadas para
analisar resultados e planejar alternativas.
"Tudo isso é
evidência científica: que horas aconteceu o roubo, em qual local, que dia. Podemos
analisar o que está dando certo e o que não deu resultado, para corrigir" —
avalia Ranolfo.
A estratégia deu resultado e a
maior parte dessas cidades puxou o indicador de assassinatos e de outros
crimes, como roubos de veículos, para baixo. Outro crime que assolava especialmente municípios do Interior também
apresentou queda significativa nesse período: os roubos a banco.
A Operação Angico da Brigada Militar é umas das
estratégias que têm permitido antecipar o movimento de quadrilhas
especializadas em ataques a banco, frustrando planos dos criminosos.
Em 2020, pela primeira vez em toda a série de contabilização, o Estado fechou
um ano com menos de 50 ocorrências. No mesmo ano, a taxa de homicídios se
consolidou abaixo de 15 pela primeira vez em 11 anos e outros indicadores foram
mantidos em baixa.
"A maneira de aferir
segurança pública em todo o mundo é através da taxa de homicídio. Ao
conquistarmos essa redução inédita, depois de alguns anos muito difíceis, é um
indicativo de que o nosso programa RS Seguro está dando certo" — disse o
vice-governador à imprensa nesta quinta-feira, quando os dados foram
apresentados.
Embora o governo não credite
a queda dos indicadores à menor circulação de pessoas durante o período de
distanciamento social, por entender que os grupos criminosos seguiram agindo, a
pandemia ainda pode trazer impactos à segurança pública em 2021. Um dos receios
é sobre como a crise econômica poderá refletir nos índices de violência. O tema
demanda atenção dos órgãos de segurança.
"O desemprego gera
desdobramentos na segurança. Monitoramos isso em todo o ano de 2020. Das 27
unidades federativas, 22 tiveram aumento de homicídios. Em 2021, não se sabe
até quando a pandemia vai avançar, se a economia vai ser retomada na
integralidade. Isso tudo pode ter reflexo na área da segurança. Até agora, no
RS, posso afirmar que não teve" — afirma Ranolfo.
Desafios da segurança
Investimentos
Manter investimentos e
tentar repor o déficit
histórico de servidores na área da segurança pública, num
cenário de crise, é considerado um dos principais desafios da pasta. Ao longo
da década, houve períodos tensos nos quais agentes da segurança protestavam e
pressionavam o governo por melhores remunerações. Em 2011, os PMs alegavam ter
o pior salário do Brasil, com um inicial de pouco mais de R$ 1 mil.
De lá para cá, a
situação melhorou, com reajustes aprovados na gestão Michels, mas, em 2015, as
categorias voltaram a protestar, desta vez por conta do congelamento e do
parcelamento de salários, devido à crise enfrentada pelo RS. Em novembro de
2020, após quase cinco anos, salários voltaram a ser pagos em dia. Para 2021 e
2022, há um calendário de chamamento de 3.112 servidores da segurança pública.
A defasagem na BM é de pouco menos de 50% e, na Civil, de cerca de 40%.
"Não é a situação
ideal, mas temos que pelo menos ir mantendo os efetivos e o investimento.
Depois de 57 meses, conseguimos colocar o salário em dia. A abnegação dos
servidores também precisa ser destacada. Mesmo recebendo parcelado, atrasado,
em meio a uma pandemia, eles seguiram trabalhando com qualidade" —
reconhece Ranolfo.
Uma aposta para manter os
investimentos em veículos e armamentos é o Programa de Incentivo ao
Aparelhamento da Segurança Pública (Piseg). Em um ano, foram obtidos quase R$
10 milhões em arrecadação por meio de compensações de ICMS de empresas.
Outra forma de garantir os investimentos é por meio de apoio das
bancadas. Em
janeiro, as primeiras viaturas semiblindadas foram entregues à Polícia
Civil — os 45 veículos foram adquiridos com verbas
obtidas pela bancada parlamentar gaúcha na Câmara Federal, num investimento de
R$ 6,1 milhões. O governo pretende entregar mais 73 viaturas semiblindadas até
fevereiro para BM e PC.
"É importante para proteger o operador de segurança. Dar
segurança a quem faz segurança" — afirma Ranolfo.
Crime organizado
Mesmo de dentro das prisões, as organizações criminosas coordenam
o crime do lado de fora. Este é um dos gargalos da segurança. Ainda que os
embates entre as facções tenham reduzido, não significa que perderam força. Um
dos fatores atribuídos à redução dos enfrentamentos é uma espécie de
profissionalização do crime, mais interessado no lucro do que nos conflitos.
Os dois últimos governos
aderiram à transferência de presos para penitenciárias federais. Além da
Operação Pulso Firme, em 2017, no ano passado duas etapas da Império da Lei
removeram mais 27. Mas a medida é temporária, já que eles regressarão ao Estado
em algum momento e outros podem ascender na facção. As polícias também
monitoram, nos últimos anos, a aproximação entre essas facções do RS e
criminosos de fora do Estado.
Neste cenário, descapitalizar os grupos é a forma de atingir a
cadeia do crime até o topo. Um movimento percebido pela polícia é a aquisição
de bens e propriedades, no Interior, para mascarar esses valores. Em agosto de
2019, foi inaugurada a Divisão de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro.
Combater e controlar o crime organizado é também uma forma de
manter os indicadores de homicídios em queda.
"A atuação da inteligência tem sido muito forte, em mapear as
organizações criminosas, saber quem é quem. Todo homicídio é estudado, com
troca de informações com a Polícia Civil. Não aceitamos esse discurso de que
isso é morte do tráfico. Não pode ter morte nenhuma. Não interessa se é do
tráfico. Buscamos entender se é uma guerra entre organizações ou se é só
cobrança de dívidas. E o que pode acontecer a partir daquela morte, se pode
gerar outras. Isso nos permite dar uma pronta resposta" — afirma o
comandante-geral da Brigada Militar, Rodrigo Mohr Picon.
Sistema prisional
A superlotação de unidades prisionais e a dificuldade em barrar o
acesso a celulares e drogas dentro das cadeias ainda é um gargalo a ser
enfrentado. A complexidade do tema fez o governo desmembrar o sistema prisional
da segurança pública em 2019. Nos últimos dois anos, um dos dilemas
enfrentados foram presos mantidos em viaturas e delegacias da Região
Metropolitana. Muitas vezes custodiados por PMs, à espera
de vaga no sistema.
Em agosto de 2020, com quase
nove meses de atraso, a inauguração da Penitenciária
de Sapucaia do Sul, com vaga para 600 detentos, permitiu
desafogar esses locais. A prisão vem funcionando como um centro de
triagem.
O governo projeta a construção de outro espaço, o Núcleo de Gestão
Estratégica do Sistema Prisional (Nugesp), em Porto Alegre, com 700 vagas disponíveis
para a "passagem" de presos antes da entrada no sistema. Segundo
o secretário da Administração Penitenciária, Cesar Faccioli, o
projeto está em fase final de contratação do responsável pela obra. O
governo espera iniciar a construção em breve e finalizar em cerca de oito
meses, ainda neste ano.
Uma das metas, diz Faccioli, é também reestruturar a Penitenciária
de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc), para que volte a ser considerada de
alta segurança. O uso de tecnologia para conter o ingresso de ilícitos é uma
das apostas da gestão. Foram instalados oito scanners corporais, e cinco
bloqueadores de celular estão em processo de aquisição - a única unidade que
conta com o bloqueio de sinal telefônico é a Penitenciária Estadual de Canoas.
Violência doméstica
O combate à violência doméstica evoluiu na última
década no país e no Estado. No RS, em 2012 foi criada a Patrulha Maria da Penha
da Brigada Militar para fiscalizar as medidas protetivas. Em 2017, o
feminicídio entrou para o Código Penal como qualificadora do homicídio — ou
seja, quem comete esse tipo de crime está sujeito a pena mais severa.
O ano mais crítico
para esse tipo de crime foi em 2018, quando 116 mulheres foram mortas no RS. Em
2019, foi criado o projeto Sala das Margaridas, implantado
em 22 delegacias, onde mulheres são atendidas em espaço reservado. Atualmente,
há 23 delegacias especializadas da Polícia Civil. As patrulhas da BM foram
ampliadas para 108 cidades.
Nos últimos dois
anos, houve redução e o Estado chega a 2020 com 76 casos. O feminicídio é o único indicador da
violência doméstica não subnotificado. Entre os demais crimes, estima-se que
somente 10% sejam registrados. A maioria das vítimas se cala.
"Nos últimos anos, a
discussão do tema fez com que evoluísse e a Lei Maria da Penha foi um divisor
de águas. Fez a sociedade entender que o feminicídio não é passional, é
repugnante. O que nós buscamos é equidade. Não queremos morrer pelo fato de
sermos mulheres. Infelizmente, isso ainda acontece, por conta do sentimento de
posse sobre elas. Evoluímos, sim, mas temos a evoluir ainda. A tendência é de
que as próximas gerações colham esses frutos" — analisa a delegada Nadine Anflor, primeira mulher a se tornar chefe
da Polícia Civil do RS.